SOLUÇÃO DE CRISE EM BOLETOS

DÍVIDAS TRABALHISTAS MILIONÁRIAS DA EDITORA TRÊS COMEÇAM A SER PAGAS E FINALMENTE RESOLVIDAS, DEPOIS DE ANOS DE NEGOCIAÇÕES E ATUAÇÃO FIRME DO SINDICATO

Está chegando ao fim uma das mais longevas e difíceis negociações de dívidas trabalhistas com jornalistas paulistas dos últimos anos. Apelidado de “calote da IstoÉ”, os abusos e desrespeitos do Grupo de Comunicação Três – que edita IstoÉ, Dinheiro, Planeta, Gente e Motor Show, entre outros – arrastam-se desde 2007, quando a empresa, atolada em dívidas, demitiu cerca de 240 funcionários e em seguida entrou em recuperação judicial (RJ) para escapar da bancarrota.

Com o passar dos anos, o artifício jurídico mostrou-se ineficaz e malsucedido para os credores receberem seus direitos. A prova dessa afirmação é que nem bem a recuperação judicial acabou, após 9 anos, e o grupo de comunicação voltou a descumprir acordos, atrasar pagamentos e salários, além de obrigações tributárias.

Com a mudança radical no modelo de negócios – digital em detrimento do impresso –, a empresa não adquiriu equilíbrio financeiro, e o endividamento da Editora Três voltou a crescer, ultrapassando a casa do bilhão de reais em 2019. “Eram dívidas trabalhistas e tributárias vultosas que vinham sendo parceladas e pagas. Mas a quitação desses débitos foi interrompida diante de mais uma crise de gestão da editora, que ganhou força com a mudança de paradigma mercadológico editorial no início da década de 2010”, afirma Alan Rodrigues, diretor do SJSP e jornalista de IstoÉ.

Em meados de 2019, o quadro financeiro da editora era catastrófico, com mais de seis meses de atrasos recorrentes de salários, paralisações e negociações frustradas. Em maio de 2020, a editora novamente recorreu à Lei da Recuperação Judicial para driblar a falência.

O que diz a lei

A Lei de Recuperação Judicial foi cria- da, há quase duas décadas, em substituição à legislação então vigente sobre concordatas, sob a justificativa de evitar a falência de empresas para favorecer a continuidade de suas atividades econômicas e a manutenção de empregos. Pela lei, as empresas que têm seu pedido de RJ aprovado pela Justiça – com base em uma listagem de credores e dos valores devidos a cada um – ficam imediatamente protegidas de cobranças e execuções. Sendo assim, têm de passar a honrar em dia todas as obrigações contraídas a partir de então, sobretudo os salários.

Pela lei, as empresas em RJ devem elaborar um plano de pagamento das dívidas em até dois meses, para ser aprovado pelos credores em uma assembleia em até cinco meses, e homologado pelo juiz num prazo de mais 30 dias. O que acontece, de fato, é que os prazos vão sendo dilatados a pedido das empresas, por decisão do juiz do caso, e por vezes se estendem por vários anos.

Na prática, a lei prevê um processo que se torna um mecanismo de negociação de deságios das dívidas (que, no caso da Editora Três, chegam a 95% do valor de- vido). Isso porque, se a assembleia de credores rejeitar o plano de recuperação apresentado pela empresa, ela entra em falência, caso em que as dívidas trabalhistas passam na frente dos demais credores (com valores máximos de 150 salários mínimos), e cujo acerto final de dívidas pode acontecer só depois de vendido o conjunto do patrimônio, o que pode demorar muitos anos.

Assim, o período que antecede a assembleia de credores é de intensa negociação entre a empresa recuperanda e seus credores, divididos pela lei em quatro classes: I – trabalhistas; II – credores com garantias; III – credores em geral (quirografários); e IV – micro e pequenas empresas. Para ser aprovado, o plano tem de ter a maioria dos votos em cada classe separadamente, sendo que nas classes II e III vale a maioria dos créditos, e nas classes I e IV a maioria numérica por cabeça.

Nos últimos oito anos, cerca de 4 mil companhias pediram recuperação judicial no Brasil. Dentre elas, 23% tiveram seus planos aprovados pelos credores, 10% faliram e o restante ainda não realizou a assembleia, segundo levantamento da consultoria Corporate Consulting e do escritório de advocacia Moraes Salles.

Em nossa categoria, tivemos o terrível exemplo da Editora Abril, que entrou em RJ em 16 de agosto de 2018, após demitir mais de 800 trabalhadores e não pagar nada. Em meio a intensa luta sindical, a empresa realizou sua assembleia de credores cerca de um ano depois e pagou o devido a mais de 97% dos trabalhadores em até 18 meses (o prazo foi mais longo para quem tinha mais de R$ 350 mil a receber).

Nova Recuperação Judicial

Quando a Editora Três entrou com o seu segundo pedido de RJ, em plena pandemia, a resposta do Sindicato foi imediata. Convocou uma assembleia dos jornalistas, por meios eletrônicos, assim que a em- presa apresentou o plano de pagamentos, destacando: “O que chama atenção neste segundo pedido de socorro judicial é que a empresa sequer quitou muitas das dívidas com os credores da primeira recuperação, que terminou em 2016 (ainda sem esgotar o prazo final de pagamento dos créditos), e a Justiça autorizou essa nova Recuperação Judicial ao grupo empresarial”. “Foi uma sensação muito ruim de injustiça”, lembra a jornalista Eliane Lobato, ex-diretora da IstoÉ na sucursal do Rio de Janeiro.

O fato é que esse segundo plano propunha um cano gigantesco nos credores. Só os trabalhistas contabilizavam cerca de 700 trabalhadores, mais de uma centena, jornalistas. “A Lei de Recuperação Judicial protege os caloteiros e funciona como um instrumento de força para que eles, legalmente, reduzam o total de sua dívida e melhorem muito as condições de pagamentos, em detrimento dos credores”, afirma Paulo Zocchi, que na época era presidente do Sindicato.

Esse entendimento pode ser confirma- do com uma leitura detalhada do plano de recuperação judicial – cujo ponto central é um enorme desconto na quitação de dívidas, com prazo de vários anos para concluir os pagamentos. Além disso, o plano aponta a mudança no modelo de negócios da empresa – com a migração dos meios impressos para as plataformas digitais e a constituição de um portal na internet – e a venda de bens imóveis.

Em relação aos trabalhadores, o plano propunha pagar integralmente as dívidas até R$ 250 mil, e, para os que tinham mais a receber, o valor acima dos R$ 250 mil passaria para a Classe III, cujas condições de pagamento são de calote: deságio altíssimo, com o restante parcelado a longo prazo. Os jornalistas na ativa na Editora Três são em sua maioria PJs ou frilas fixos. Como os salários com atraso de seis meses e entraram na RJ, eles teriam enormes perdas nas classes III e IV.

“Para o Sindicato, nenhum credor trabalhista pode ter qualquer deságio, pois é salário”, diz Zocchi. “Nossa atuação é defender sempre o direito de todos os jornalistas receberem tudo o que a em- presa lhes deve.”

Negociação trabalhista

A partir da assembleia dos jornalistas, o Sindicato propôs uma reunião com a empresa para negociar os termos do plano, em movimento conjunto com o Sindicato dos Trabalhadores Administra- tivos. “Pudemos utilizar a larga experiência que tivemos na RJ da Editora Abril para apresentar propostas melhorando as condições de pagamento aos trabalhadores”, afirma o advogado Raphael Maia, coordenador jurídico do Sindicato dos Jornalistas.

Após várias reuniões com o Grupo de Comunicação Três e assembleias para debater, as condições de pagamento dos trabalhadores chegaram ao seguinte ponto:

• os créditos trabalhistas seriam 100% pagos até o limite de 250 salários mínimos;

• para créditos até R$ 350 mil, pagamento integral até 250 salários mínimos e pagamento de 50% do que excedesse até R$ 350 mil;

• para créditos além de R$ 350 mil, as condições acima até esse limite, com o restante sendo alocado na Classe III;

• PJs e frilas fixos trabalhando na editora seriam alocados em subclasse especial dentro das Classes III e IV, com as mesmas condições da Classe I;

• os pagamentos acima seriam feitos no prazo de até um ano contado a partir da aprovação do plano e homologação de seu resultado.

No plano da Editora Três, que não tinha recursos para saldar as dívidas, o pagamento dependia da venda da gráfica da empresa, bem como do terreno no qual estava instalada, na via Anhanguera, conjunto avaliado em R$ 40 milhões.

A negociação dos PJs e frilas fixos foi um problema à parte que merece explicação. Cerca de 60 jornalistas da editora eram, como ainda são, PJs e frilas, e levariam o calote, por serem enquadrados na RJ como empresas ou credores avulsos. O Sindicato leva, há mais de uma década, o combate pelo registro em carteira de todos os jornalistas da Editora Três. O pejotismo de trabalhadores com serviço regular é fraude trabalhista – sonegação de registro em carteira. E o Sindicato exerce plenamente a representação dos jornalistas nesta situação, tendo exigido por diversas vezes, por exemplo, o pagamento de valores atrasados. No caso da RJ, a sua atuação foi fundamental para garantir a inclusão nas condições da Classe I já que são legitimamente trabalhadores da empresa.

Ao final, os jornalistas decidiram que o Sindicato conduziria um voto favorável à aprovação do plano nas condições colocadas, ressalvando-se o direito de todos que quisessem entrar na Justiça, sobretudo os que tinham altos valores a receber e foram muito prejudicados.

NOSSO SINDICATO UTILIZOU A EXPERIÊNCIA ADQUIRIDA NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL DA EDITORA ABRIL PARA APRESENTAR PROPOSTAS QUE MELHORARAM AS CONDIÇÕES DE PAGAMENTO AOS TRABALHADORES

Reconhecimento

A cronologia dos fatos mostra como a letargia jurídica do processo de recuperação judicial é danosa e extremamente desgastante. Aprovado o plano, uma nova celeuma aconteceu com a venda do imóvel de Cajamar (gráfica). Foram realiza- dos três leilões, que se estenderam por meses (veja a cronologia). O martelo da venda foi batido pelo valor de 32,13 milhões, sendo 50% de entrada e o restante em 11 prestações mensais e iguais.

Os pagamentos começaram em dezembro de 2022, com os trabalhadores recebendo 54% do crédito estipulado para cada qual. “O grande triunfo aconteceu em 29 de dezembro de 2022, quando o conjunto dos trabalhadores viu os créditos serem depositados nas contas”, afirma Alan. “Esse é o momento no qual a gente vê que a luta vale a pena.”

O reconhecimento pela atuação do Sindicato pode ser medido pelas mensagens dos profissionais. “Parabéns pela mobilização e pelo resultado final. Agradeço o auxílio e empenho de todos os amigos e em especial aos diretores e funcionários do Sindicato”, disse o jornalista Gilberto Nascimento. “Parabéns aos envolvidos nessa luta que muitos achavam infrutífera, mas que no fim nos trouxe alegria e justiça”, disse Cesar Itiberê, ex-editor de fotografia da IstoÉ. “Uma vitória para ser muito comemorada, principalmente depois da reforma trabalhista e da tentativa de enfraquecer as relações profissionais”, escreveu o jornalista Fernando Brum.

As saudações ultrapassaram as fronteiras do estado. “Uma felicidade imensa! Preciso demais agradecer. Vida longa ao Sindicato dos Jornalistas de São Paulo!”, comemorou o ex-diretor da IstoÉ em Brasília, Rudolfo Lago.

A atuação coletiva e o estado de alerta se mantêm, já que o pagamento ainda continua a ser feito, a cada mês, não sem percalços e tensão. O pagamento final de todas as obrigações ainda está longe. É preciso garantir que o valor arrecadado seja suficiente para quitar todos os débitos. “Estamos de olho”, diz Alan Rodrigues.•

15 ANOS DE CALOTE

• Em 11 de maio de 2007, a Editora Três, que publica as revistas IstoÉ, IstoÉ Dinheiro, Dinheiro Rural, IstoÉ Gente, Menu, Motor Show, dentre outras, anuncia a demissão de 240 funcionários.

• Em 15 de maio de 2007, com dívidas que giravam em torno de R$ 500 milhões, a empresa pede RJ na 2a Vara de Falências e Recuperação Judicial de São Paulo.

• Em 20 de maio de 2008, um ano após o pedido de RJ, os credores da Editora Três aprovam o Plano de Recuperação Judicial, que prevê o pagamento das dívidas em até 12 anos.

• No primeiro período após a entrada em recuperação judicial, a empresa dá sinais de melhora. Unifica as redações, os salários são pagos em dia e as dívidas começaram a ser quitadas.

• Em 2016, a empresa sai da recuperação judicial, ainda pagando as dívidas segundo previsão do plano aprovado.

• Em 2019, a empresa volta a atrasar os pagamentos de salários e tributos. As dívidas se avolumam e passam de R$ 1 bilhão.

• Em maio de 2020, a holding Grupo Três entra com um novo pedido de RJ. O argumento da vez é a queda na arrecadação publicitária devido à pandemia e as dificuldades de acesso a crédito, além da crise no modelo de negócios de revistas impressas.

• Em 26 de julho de 2021, a assembleia de credores aprova o novo plano de recuperação. Os bens imóveis são colocados à venda por meio de leilão, assim como o portal da editora.

• Nos últimos meses de 2021, a empresa encaminha o leilão de sua gráfica e do terreno no qual fica. Pelo plano, o dinheiro a ser apurado é destinado às dívidas trabalhistas.

• Em 21 de julho de 2022, os direitos digitais de IstoÉ, IstoÉ Dinheiro, Planeta, Gente, Motor Show e de outros 70 títulos são arrematados por R$ 15 milhões. O portal da Editora Três é comprado pela Entre Empreendimentos, do empresário do mercado financeiro Antônio Carlos Freixo Junior.

• A venda da gráfica vira novela. Houve três leilões. Em outubro de 2022, a gráfica é arrematada por R$ 32,13 milhões – metade à vista e mais 11 parcelas. Ainda não está garantido que o valor dê para a quitação total do débito trabalhista, o que pode estender a batalha. Os outros imóveis da editora continuam à venda.

• Em dezembro de 2022, os trabalhadores da editora, ex- funcionários e colaboradores começaram a receber os créditos individuais: 54% do débito foi pago de uma vez e o restante, pelo previsto, será parcelado em 11 meses (utilizando os valores recebidos pelo terreno e a gráfica).