Romance de Elisabetsky se passa na ditadura

por João Marques

Héctor vivia em Rivera, no Uruguai, que faz divisa com Santana do Livramento (RS) e se encantava com o portunhol, que se falava nas duas cidades. “Para os riverenses, o portunhol não é o espanhol mal falado por turistas brasileiros: é seu idioma natal, a língua dos afetos, que dispensa normas ortográficas”. Da doçura e da musicalidade que modulavam as falas, ele nunca se esquecia; por isso, ao entrar para a Universidade de Montevidéu, foi estudar linguística e, em 1959, aos 21 anos, descobriu uma das maiores autoridades em dialetos fronteiriços, veio para São Paulo e ingressou na USP.

Narrado em múltiplas vozes — primeiras e terceira pessoa —, em dois planos — intercalados em capítulos curtos — e em três partes — Anoitece, Noite Adentro e Amanhece —, Um Dia Esta Noite Acaba, de Roberto Elisabetsky (Boitempo, 248 págs.) parte do dia 25 de janeiro de 1984, do comício por eleições diretas da praça da Sé, em São Paulo, e, com recursos de flashback, constrói um romance histórico, que começa na renúncia de Jânio Quadros, passa pelo golpe de 1964, até chegar à luta contra a ditadura.

Roberto Elisabetsky é dramaturgo, tradutor e roteirista de cinema, foi professor do curso de Rádio e TV da ECA- -USP; fascinado por obras que misturam acontecimentos reais e ficção, seu livro anterior, Cadafalso, também é um romance histórico ambientado em período de opressão política, se passa nos anos 1930, acompanha o percurso de duas judias ortodoxas que migram para o Brasil, em busca de uma nova vida e encontram a repressão policial e a perseguição da ditadura Vargas.

Na USP, Héctor conhece Fernanda, colega de faculdade na Maria Antônia, se apaixona por ela, vai morar na sua casa, um sobrado na Frederico Abranches. Aproxima-se dos frades dominicanos, entra para o movimento estudantil, recebe o apelido de Tupamaro. Juntos, ganham um filho, Ernesto, passam a frequentar as missas da Igreja de São Domingos, na rua Caiubi, partem para a militância política e ele acaba sendo preso. Oswaldo Rezende, Luiz Felipe Ratton, Fernando de Brito, Roberto Romano, Magno Vilela, Tito de Alencar, além de Carlos Marighella, são alguns dos personagens desse plano.

Apesar da advertência de que “nas passagens que envolvem personalidades e eventos históricos, a precisão dos fatos foi sacrificada a serviço da narrativa”, Elisabetsky reconstitui esse período da história do Brasil com bastante rigor e, para isso, tem como referências obras de Alfredo Sirkis, Carlos Knapp, Elio Gaspari, Mário Magalhães, entre outros autores.

Já o primeiro plano da narrativa se passa numa só noite. A personagem Fernanda, tradutora do espanhol, está em casa, assiste ao comício pela televisão e conversa com seu filho, jovem publicitário, e com seu segundo marido, Tomás, executivo de uma multinacional. Com opiniões divergentes, discutem aquele momento da política brasileira e a volta da democracia, até que entra em cena, numa trama tipicamente teatral, uma quarta personagem, a francesa Juliette; pesquisadora acadêmica, traz notícias de Héctor, e as histórias se cruzam num desfecho transformador.

Segundo levantamento feito por Berttoni Licarião para a sua tese de doutorado, na Universidade de Brasília (UnB), há mais 100 obras de ficção na literatura brasileira que tem a ditadura como pano de fundo, mais da metade, publicadas a partir de 2010. Entre as razões desse fenômeno, estaria a tardia criação da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014), diferente da Argentina, por exemplo, que teve sua Comissão instalada em 1983, logo após o fim da ditadura do país vizinho. Para Licarião, a insistência da literatura brasileira em trazer a tortura e a violência ao plano das narrativas, pode estar relacionada com a ausência de políticas públicas e medidas institucionais que seriam fundamentais à superação do trauma nacional.

“Eu sempre gostei do Brasil. Mas cheguei a uma conclusão: o Brasil não gosta de mim. Nunca gostou. Me perseguiu injustamente, me agrediu de forma covarde, arrancou de mim as pessoas que mais amo.” (Héctor)