Pejotismo é modernização das relações de trabalho?

por Paulo Zocchi

Os números chamam a atenção: 14.149 jornalistas eram contratados pelo regime CLT no estado de São Paulo, no final de 2019, segundo os dados levantados pelo Dieese a partir da Rais, relatório com as informações do registro em carteira; entretanto, a Pnad (pesquisa por amostra de domicílios) projetava 33 mil pessoas afirmando serem jornalistas no Estado. Conta aproximada: 57% da categoria trabalha sem registro, ou como PJ, ou está desempregada ou sobrevive com outra profissão.

Em 1937, no momento de fundação do nosso Sindicato, travou-se um debate basilar: seria criada ali uma associação de profissionais liberais ou uma entidade de trabalhadores assalariados? Optou-se pela segunda alternativa, com um entendimento claro: o jornalista profissional presta serviços, sobretudo, para empresas, e vive do seu salário. Será que hoje, passados mais de 83 anos, houve uma mudança a tal ponto profunda que nos levaria a reconsiderar, mesmo parcialmente, esse diagnóstico sobre a natureza de nossa identidade? E o papel do Sindicato deveria mudar em quê frente às mudanças?

Além da tecnologia

Não há dúvidas de que o jornalismo está sob forte impacto dos avanços tecnológicos, da tecnologia da informação, da comunicação digital em rede. Ocorrem muitas transformações, mas o foco aqui são as relações de trabalho: há uma redução das redações, espalha-se o trabalho remoto. Mas dá para cravar que uma das causas da crescente precarização do trabalho é, em si, o avanço tecnológico? Não creio, pois, se assim fosse, deveríamos nos opor a ele.

É preciso ter um olhar amplo sobre a questão. Os seres humanos ampliam seus conhecimentos tecnológicos desde a Idade da Pedra. É uma marca contínua da história humana. Desde a Revolução Industrial, há mais de dois séculos, houve um espantoso avanço da ciência e da tecnologia, expresso no vertiginoso crescimento da produtividade do trabalho.

Esse processo não para. Uma dada equipe de jornalistas que precisava trabalhar um dia inteiro para fechar um jornal nos anos 70, antes dos computadores, certamente poderia ser bem menor com os recursos de hoje em dia. Até aí, não há de fato grande novidade. Isso já acontecia antes. A grande diferença, a meu ver, está no regime econômico e social no qual vivemos hoje.

No início do século 19, os operários eram desprovidos de direitos, trabalhavam por horas intermináveis, sem domingo nem férias, mas entraram no século seguinte conseguindo, por meio de suas próprias lutas (e com a formação de sindicatos!), reduzir drasticamente a jornada diária e obter um conjunto de direitos trabalhistas. Em termos econômicos, conseguiram se apropriar de parte do aumento da produtividade do trabalho ocorrida no século anterior, doravante destinada a melhorar o seu padrão de vida.

Se voltarmos ao exemplo da redação, com o avanço tecnológico, poderíamos muito bem manter o mesmo número de jornalistas, reduzir a jornada de trabalho da redação inteira e continuar fechando o jornal. Os lucros da empresa não seriam afetados.

O drama é que vivemos hoje uma era global na qual as empresas buscam se apropriar de todos os benefícios financeiros oriundos do aumento da produtividade do trabalho. Cresce o padrão de rentabilidade exigido pelo “mercado”. E aí, não só a jornada não cai, como a tecnologia é apropriada para diminuir o número de empregos e se colocar os assalariados na defensiva, para que haja uma reversão do que foi obtido no passado.

Não se trata, porém, de um resultado obrigatório do avanço tecnológico, mas de uma contínua pressão econômica (e, por conseguinte, política) para reduzir custo do trabalho em prol dos empregadores, derrubando o padrão de vida e os direitos de quem vive de trabalho. A isso, é preciso opor uma resistência coletiva.

Pejotismo como fraude

Hoje em dia, já podemos usar a palavra pejotização assim, sem aspas nem itálico. Ao menos num jornal de jornalistas. Ela nasceu lá pelos anos 90, em altos salários, com o chamariz de resultar em menos Imposto de Renda. Aos poucos, espalhou-se.

A IstoÉ é um bom exemplo. O pejotismo foi implantado há mais de dez anos, mimetizando as relações de trabalho. O jornalista pejotizado continuava com 13º, férias remuneradas, reajuste anual pela Convenção Coletiva da categoria. Naquela época, diretores do Sindicato explicavam aos jornalistas a desvantagem da situação fazendo contas: não havia os 8% mensais de FGTS, nem o INSS etc. etc. Mesmo sob demanda, os fiscais do Ministério do Trabalho – da delegacia instalada na Lapa, ali perto – demoravam anos para aparecer.

A empresa, porém, passou depois a retirar tudo gradativamente. Caiu o 13º, o reajuste, as férias e, no final, até o salário mensal (em revistas que não saem todos os meses). Quando os pagamentos começaram a atrasar, os jornalistas, em assembleia, demandaram ao Sindicato que entrasse com medidas judiciais. Ficou claro, então, que um sindicato de trabalhadores não poderia representar “empresas” judicialmente. Só poderíamos entrar na Justiça individualmente com ações reivindicando (corretamente) o vínculo empregatício.

Neste percurso de anos, o Sindicato jamais deixou de estar ao lado do conjunto dos jornalistas da Editora Três, quase todos atualmente pejotizados: fez negociações com a empresa, organizou assembleias e até paralisações. Na recuperação judicial em curso agora, defende todos os jornalistas, contratados, PJs e ex-funcionários. Mas os PJs que de fato conseguirão melhores condições de pagamento (tal como na recuperação judicial da Abril) são os que entraram na Justiça para obter o vínculo em carteira.

Até aqui, tratamos do pejotismo como fraude nas relações de trabalho. Sobre isso, é importante pontuar: no Brasil, continuam valendo as condições básicas para reconhecimento do vínculo empregatício (CLT): habitualidade do trabalho, pessoalidade (o prestador do serviço é uma pessoa deter minada), subordinação (existe um chefe) e remuneração. Com essas condições claras, é exigido o registro em carteira de trabalho, em qualquer ramo da economia. A abolição por lei desta garantia seria um retrocesso inédito nas relações de trabalho. Faz parte da identidade de todo sindicato combativo bater-se ao máximo pelo rigoroso respeito do vínculo. Isso vale tanto para metalúrgico quanto para jornalista.

NO BRASIL, CONTINUAM VALENDO AS REGRAS PARA O RECONHECIMENTO DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO, PARA A OBRIGATORIEDADE DO REGISTRO EM CARTEIRA: HABITUALIDADE, PESSOALIDADE, SUBORDINAÇÃO E REMUNERAÇÃO

“Eugência”

Mas e quando o jornalista passa a exercer o seu ofício de fato como pequena ou microempresa, prestando serviços para diferentes clientes – como companhias, escritórios ou pessoas de projeção pública? Isso ocorre com frequência, e naturalmente não equivale a fraude de contratação. Ainda assim, não muda essencialmente a natureza de “trabalhador(a)” da pessoa, por assim dizer, embora mude a natureza jurídica da relação entre partes. Pois o jornalista avulso, na chamada “eugência”, vive com frequência uma piora em suas condições de vida e trabalho. Deixa de ter jornada, e em muitos casos fica sem dias de descanso e sem férias. Em boa parte das situações, seus rendimentos líquidos caem, e ainda há os custos do “negócio”. Seus riscos crescem, e perde proteção.

No lugar do patrão, o jornalista passa a ter os contratantes do seu trabalho, frente aos quais não tem grande poder de nego ciação num mercado atomizado, e sofre muitas exigências. Sob a aparente capa de modernização, o jornalista como pessoa jurídica enfrenta, na maioria dos casos, uma realidade de trabalho muito duro para manter uma remuneração digna. Em termos de rendimento, o cenário dominante é de retrocesso.

Sindicato para quê?

As crescentes dificuldades da profissão são tema permanente de debate no Sindicato. Partimos da ideia de que, em todas as situações – e sobretudo nas críticas –, a primeira obrigação dos diretores do Sindicato é estar junto aos jornalistas.

Qualquer que seja a situação do jornalista, o Sindicato deve ser visto como um “espaço” dele para debater com os iguais, para recorrer em caso de necessidade, para elaborar coletivamente os caminhos para chegar ao futuro. Pois, se os operários de dois séculos atrás construíram formas organizadas para obter direitos e regulamentar condições de trabalho, nossa categoria pode almejar isso, contando com uma estrutura já constituída.

Qual é o foco da atuação cotidiana do Sindicato? Em nossa realidade hoje, só pode ser atuar intensamente para preservar as convenções e os acordos coletivos de trabalho, bem como, em sua atuação geral, a legislação trabalhista. É aqui que estão as conquistas básicas de nossa categoria, a começar pelos pisos salariais, sem as quais seríamos todos ainda mais precarizados. As condições fixadas neste arcabouço legal são uma referência para toda a categoria profissional, mesmo quando não se trabalha com o registro CLT.

As demais atividades do Sindicato – e são muitas! – organizam-se a partir desta sua obrigação natural. Parte daí a defesa da profissão em sentido amplo, o combate à violência que nos atinge, nossa inserção como categoria na vida política e social do Brasil.

A uberização é o futuro?

O paradigma “moderno” da precarização é a “uberização”. Será um futuro inexorável? Para pensar a respeito, recomendo o vídeo com a entrevista que Paulo Lima (“Galo”), líder dos motociclistas de aplicativos, deu recentemente à TV Folha.

Com a uberização, as empresas derrubam os custos de entrega. Já os prestadores de serviço ficam à mercê do “aplicativo” em todos os sentidos – não sabem se terão trabalho, quanto ganharão etc. Caso se acidentem, estão sozinhos… Suas condições de vida se degradam. Relações semelhantes já atingem a nossa profissão, como no caso de repórteres fotográficos que passam o dia atrás de pautas por conta própria, para depois tentar a venda via agências, sem garantias… A sociedade humana seguirá nesta trilha sem resistência? Galo acha que não, e busca caminhos.

O jornalismo constituiu-se, nas sociedades modernas, como instrumento essencial da democracia. Vê-se atualmente sob ataques de múltiplas formas. Um deles é a precarização das condições de vida e trabalho dos jornalistas, que debilita a própria atividade jornalística. É um retrocesso social de largo alcance. E, como categoria profissional, os jornalistas acompanham a degradação que ameaça o conjunto dos assalariados.

Não sabemos em qual ambiente viveremos daqui a dez ou vinte anos. Mas, se depender da ação de nosso Sindicato, haverá de ser numa sociedade com mais formalidade, garantias e direitos para quem trabalha, e com um jornalismo mais forte e melhor. Consiste nessa luta permanente a nossa própria identidade sindical.

Paulo Zocchi é presidente do Sindicato. Trabalhou por 16 anos na Folha de S.Paulo, por dois na TV Bandeirantes e é funcionário da editora Abril desde 2004.