Narrativas visuais no combate à censura

Designer investiga o quanto as atividades censórias durante a ditadura militar afetavam o jornalismo e lança um projeto de narrativa visual para trazer informação e gerar engajamento

por Crystian Cruz*

Nasci em 1978, ano em que o AI-5 foi extinto. A ditadura militar acabou quando eu tinha 7 anos de idade, portanto não tenho nenhuma memória ativa do impacto das atividades censórias nos meios de comu­nicação. Passei mais de uma década tra­balhando como diretor de arte de revistas e jornais, e um dia me peguei pensando em como seria estar na pele de artistas gráficos e jornalistas que sofriam com a ação da censura durante a ditadura. Ao pesquisar sobre o assunto, descobri que a censura fazia mais parte da minha infância do que eu imaginava: aos 15 anos, conheci o Millôr Fernandes, sem saber que ele era o criador da Pif-Paf, a primeira revista a ser extinta pela Censura apenas quatro meses depois do golpe de 1964. Outra descoberta foi que o livro Incidente em Antares, de Erico Verissimo — a primeiro grande obra que tive a chance de ler —, trazia diversas provocações ao regime mi­litar que passaram desapercebidas pela Divisão de Censura.

Em meados dos anos 2000, o Arqui­vo Nacional começou a disponibilizar o acesso público ao acervo da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP). Desde então, vários pesquisadores estão buscando contar essas histórias, sendo que a maioria delas por meio da escrita factual. Porém essas histórias não focam no efeito causado pela censura imposta ao processo criativo, o que foi identificado como um problema para gerar um maior engajamento pelas gerações atuais. E isso levou à decisão de desenvolver um projeto de design exploratório por meio de um doutorado na Austrália, com conclusão prevista para o início de 2021. O objetivo é promover um novo olhar para o tema e descobrir se um melhor engajamento pode ser obtido por meio de narrativas visuais, no campo emergente do design ativismo.

O projeto de design

Batizado de Censurativa, a pesquisa se divide entre análise de documentos e um componente criativo baseado no princípio da narrativa visual como forma de for­necer um olhar único sobre a censura. A pesquisa teórica abrange a interação entre censores e artistas para compreender o quanto a criatividade era impactada pelos procedimentos censórios. Para isso, foram analisados cerca de 15 mil documentos da Divisão de Censura presentes no Arquivo Nacional, além de arquivos de veículos de comunicação como Editora Abril e Grupo Estado. Entre as descobertas, es­ tão algumas respostas bem criativas que profissionais dos meios de comunicação deram aos atos censórios. Uma delas é a capa do Jornal do Brasil no dia 12/09/1973, sobre a destituição do presidente Salvador Allende no Chile. Essa seria a manchete da edição, mas à noite veio a ordem de não se publicar manchete nem foto sobre o golpe na primeira página. O editor Alberto Dines decidiu seguir a ordem à risca e fez uma capa sem esses elementos, e com a fonte em corpo maior. O resultado é uma das mais surpreendentes capas de jornal de todos os tempos. Porém, essa resposta criativa custou caro para Dines, que foi demitido três meses depois. Segundo ele, o motivo foi essa capa. Outro caso memorá­vel são os poemas de Camões no Estado de S. Paulo. Trechos da obra apareceram mais de 600 vezes no jornal, se tornando uma simbólica forma de protesto. Estratégia similar foi adotada pelo afiliado Jornal da Tarde, que trazia receitas de bolo.

Histórias como essas serviram de ins­piração para o componente prático desse projeto, mostrando que táticas inusitadas podem ajudar a delatar o impacto da cen­sura em peças de comunicação. A expe­riência é centrada em uma tipografia que se autocensura, emulando a experiência daqueles que foram diretamente afeta­dos pela censura, a partir de um banco de dados de palavras-chave vetadas que foram extraídas dos pareces censórios. A fonte interativa foi criada especialmente para o projeto, e conta com um código de programação especial que permite rasurar palavras em tempo real. O desenho das letras é uma réplica da tipografia presente na máquina de escrever usada para redi­gir o documento do AI-5, que oficializou a censura federal em 1968. A pedido do projeto, o documento foi digitalizado em altíssima resolução pela equipe do Arquivo Nacional em Brasília, o que possibilitou ter uma vetorização fiel das características das letras presentes no documento.

A tipografia explora a potencialidade de narrativas visuais como um meio de provocar debates e aumentar o engaja­mento em torno da censura. A divulgação inicial dos resultados da pesquisa ocorreu na exposição [Censurativa], realizada em março de 2020 na galeria de arte Watt Space, em Newcastle, Austrália. A mos­tra apresentou cases de respostas criati­vas à censura durante a ditadura militar brasileira, materiais originais que foram censurados e diversos dispositivos intera­tivos. Também trouxe uma versão piloto da tipografia interativa, permitindo que os visitantes experimentassem o ato de censura por meio de uma interface de Twitter personalizada. Os próximos pas­sos incluem a criação de um site do projeto e uma exposição virtual. No momento as ações estão concentradas nas redes so­ciais Facebook, Instagram e Twitter, conta @censurativa. O projeto está aberto a pes­quisadores que desejarem contribuir para aumentar o banco de palavras censuradas, que hoje conta com um pouco mais de mil termos na base.

O fantasma da censura nos dias de hoje

Mesmo em democracias formais, a opressão da censura se mantém, porém com outras estratégias

O projeto Censurativa é focado no estudo de caso sobre a censura da época da ditadura militar, por ser uma época extremamente docu­mentada, graças à ânsia do governo militar em tentar se legitimar ao dar caráter oficial e burocrático às atividades censórias. Isso não quer dizer que a censura não este­ja presente nos dias de hoje. O recente caso do processo aberto contra o cartu­nista Aroeira é mais um exemplo de uso da máquina pública para impor censura.

Desde que Jair Bolsonaro se tornou pre­sidente, a censura voltou a ter presença constante nos noticiários. No dia seguinte à sua eleição, Bolsonaro concedeu uma en­trevista à Band TV, e, ao ser perguntado so­bre censura na época da ditadura, afirmou que era exercida para coibir articulistas que usavam palavra-chave com o intuito de executar um assalto a banco ou exe­cutar uma autoridade em cativeiro. Fato esse que não foi constatado em nenhum dos milhares de documentos analisados no Arquivo Nacional. E é aí que reside a im­portância de se discutir censura e suas reais intenções, pois quem tem o poder de fala tem mais chances de ter suas afirmações aceitas como verdade, mesmo sem evidên­cias. E isso pode ser comprovado por uma pesquisa feita pelo Datafolha em setembro de 2019 segundo a qual 45% da população apoiava que projetos culturais passassem por aprovação pessoal de Bolsonaro.

Ao contrário da época da ditadura, em que a estratégia censória era suprimir con­teúdo, hoje em dia é mais comum a tática de inundar o meio com desinformação gerada por fake news. O processo de com­batê-las com fatos é fundamental, porém as vezes não é o suficiente para convencer quem já tomou aquilo como verdade. Um bom caminho pode ser o de se inspirar nos profissionais que reagiram de forma criativa à censura na época da ditadura, expondo o ridículo de algumas situações. Talvez o melhor exemplo disso tenha sido o caso de censura ao livro da Marvel na Bienal do Livro em 2019, quando Folha de S.Paulo e Veja ironicamente publica­ram a cena que gerou a proibição em suas capas. Esse movimento foi amplificado pelos artistas gráficos que inundaram as redes sociais com cenas alternativas de beijo gay, e também foi ironicamente usa­da por Marcelo Freixo para questionar o prefeito Crivella sobre o uso inapropriado dos agentes públicos do Rio de Janeiro nessa ação.

Qualquer questão pública é suscetível a táticas de censura. No atual cenário de pandemia, a questão da subnotificação de óbitos tem sido muito debatida, e acabou levando à criação do Consórcio de Im­prensa, uma vez que os dados oficiais esta­vam sendo omitidos e mascarados. O fato curioso é que na época da ditadura isso também foi muito explorado pela censura, que proibiu a divulgação de dados oficiais sobre o surto de meningite em 1974. A saída foi usar dados de cartórios para dar a dimensão do problema.


* Crystian Cruz é designer gráfico e mestre em tipografia pela University of Reading (Reino Unido). Trabalhou com diretor de arte das revistas Placar, GQ Brasil e Info Exame, e como diretor de criação do jornal Diário de S.Paulo. Atualmente está cursan­do doutorado em Design e lecionando na University of Newcastle, Austrália.