Matérias expõem problemas sociais não superados

FOME, VIOLÊNCIA NO CAMPO, DESCASO COM A POPULAÇÃO INDÍGENA E DESTRUIÇÃO DA AMAZÔNIA SÃO TEMAS VENCEDORES DA 44ª EDIÇÃO DO PRÊMIO

por Adriana Franco

As matérias jornalísticas premiadas na 44ª edição do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos são um retrato fiel e desolador do Brasil em 2022 e abordam violações de direitos humanos de todos os tipos, como fome, violência contra populações vulneráveis e do campo, racismo estrutural, descaso com a população indígena e destruição da Amazônia.

A entrega dos prêmios, realizada na semana que antecedeu o segundo turno das eleições de 2022, foi carregada de discursos políticos em defesa dos direitos humanos violados, pauta das matérias jornalísticas premiadas.

Edgar Rebouças, diretor de relações internacionais da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), falou durante a abertura da solenidade de premiação em nome da comissão organizadora da premiação e reiterou que o cenário vivido pelo Brasil é o mais difícil desde a ditadura.

“Mais do que nunca a sobrevivência da democracia no Brasil depende de pessoas como as que estamos homenageando, hoje, recebendo esse prêmio. Profissionais de imprensa determinados a revelar esses fatos, denúncias e crimes. Os 528 trabalhos inscritos retratam preocupações que nos afligem diariamente nos últimos quatro anos. Os premiados nas sete categorias são reflexos deste sinal de alerta, pois dão um panorama amplo e tocante do Brasil atual por meio de fotos, textos, áudios, vídeos, ilustrações e livros. Os jornalistas premiados esta noite aprofundaram em grandes reportagens estas temáticas fundamentais para compreender melhor e refletir sobre os desafios que enfrentamos”, discursou Rebouças.

Prêmios especiais

Em 2022, foram homenageados nomes que simbolizam o país, nossas lutas, nossa cultura e um coletivo de trabalhadores que representa a luta pela comunicação pública. Desde 2009, a comissão organizadora retoma as origens do prêmio e indica jornalistas, artistas, pesquisadores ou personalidades que, ao longo de suas vidas, fizeram um trabalho de destaque e consistente para a causa da democracia, da justiça e dos direitos humanos.

Kátia Brasil e Elaíze Farias, criadoras do portal de notícias Amazônia Real, receberam o prêmio especial 2022 por mostrar, desde 2013, a realidade da região amazônica sem filtros e dando voz a cidadãos e cidadãs invisibilizados no dia a dia. Durante o discurso de recebimento do prêmio, Elaíze Farias destacou que a Amazônia não é um local fácil de se viver, especialmente por ser uma região na qual as violações de direitos nunca cessaram e, ao contrário, se agravaram após a ascensão de Bolsonaro ao poder.

“Todos [na Amazônia] estamos sofrendo ataques violentos e sistemáticos. Grande parte dos assassinatos é desconhecida, pouquíssimos têm repercussão. Ficaram perdidos nos relatos locais, nas lágrimas e na revolta dos povos indígenas, dos quilombolas, dos ribeirinhos e dos camponeses. A Amazônia, por debaixo da sua magnífica floresta, é vermelha do sangue dos seus protetores e é uma floresta que está deixando de existir em muitas partes da sua região, consumida pelo fogo do modelo econômico neocolonialista e excludente. Os nomes escapam desse apagamento quando nós, como jornalistas, contribuímos para denunciar a violência, o assassinato, a violação de direitos humanos, as ameaças ao conhecimento ancestral e ao imenso saber dos povos originários. É urgente resgatar e contar a história e a memória coletiva destes povos para que sua luta não continue esquecida. Precisamos sempre refletir nosso papel como jornalista. Nossa palavra tem um compromisso, quando você tem a história de um povo e transforma o personagem da sua matéria em um sujeito dessa história, você está comprometida com eles para sempre, e esse é nosso trabalho como jornalistas também”, discursou Elaíze.

O médico Drauzio Varella também recebeu o prêmio em reconhecimento ao seu trabalho de popularização do conhecimento no campo da saúde. Autor de livros que denunciam a lógica do sistema prisional brasileiro e os desafios para a construção de políticas para a população privada de liberdade, Drauzio nos lembra deste tema fundamental para a defesa dos direitos humanos.

Homenageado in memoriam, o repórter britânico Dom Phillips, assassinado durante o exercício profissional, foi premiado pela sua trajetória marcante no jornalismo em defesa do meio ambiente, na preservação da floresta amazônica e seus povos, tornando-se ícone da resistência. Ao premiar Dom Phillips, o Prêmio Vladimir Herzog reforça a importância de honrar a vida profissional e pessoal de Dom como um compromisso público dos que atuam em defesa dos direitos humanos.

Os trabalhadores da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) receberam ainda uma homenagem pela sua defesa da comunicação pública no Brasil por meio do Prêmio Especial Vladimir Herzog de Contribuição ao Jornalismo. Paulo Zocchi, vice-presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), destacou que a EBC já venceu 7 vezes e recebeu 13 menções honrosas do Prêmio Vladimir Herzog. “Por mais de uma década, os profissionais dos veículos que compõem a EBC figuraram entre os destaques do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog. Isso mudou nos últimos anos, pois as seguidas intervenções autoritárias realizadas na empresa tentam acabar com qualquer autonomia do trabalho jornalístico. A partir do golpe de 2016, a EBC passou a ser sufocada pelos governos Temer e Bolsonaro, que foram transformando seus veículos informativos em instrumentos de propaganda, sem espaço para o contraditório e para a diversidade. A censura interna atinge diretamente os temas relacionados a direitos humanos. A direção da EBC tenta calar as vozes dissonantes, tomando medidas contra os próprios trabalhadores e trabalhadoras. Aconteceu isso com a jornalista Kariane Costa e com os dirigentes sindicais. Mas há uma reação interna há vários anos. Os jornalistas e os radialistas se mobilizam ininterruptamente para defender o caráter público da EBC diante de uma permanente ação destrutiva da direção da empresa. E é por isso e para homenagear essa resistência que a 44ª edição do Prêmio Vladimir Herzog oferece, em caráter excepcional, esse prêmio especial de contribuição à imprensa aos trabalhadores e às trabalhadoras da EBC pela resistência em defesa da comunicação pública”, reiterou Zocchi.

Premiados

Entre os vencedores do prêmio, a reportagem em quadrinhos Três mulheres da Craco, na categoria arte, retrata a degradante situação das mulheres viciadas em crack em São Paulo, vistas pelo Estado apenas como um problema de segurança pública costumeiramente resolvido com violência. Em fotografia, a série A Dor da Fome ilustra o aprofundamento de problemas sociais que o país parecia já ter superado (veja aqui).

Carol Ito é a vencedora na categoria arte e contou ao Unidade que já havia se inscrito anteriormente, tanto na categoria arte quanto na categoria texto. “Eu sempre me inscrevia porque era um sonho ganhar o prêmio que, para mim, é o mais importante do jornalismo.  Então, foi bem emocionante recebê-lo com este trabalho de jornalismo em quadrinhos que junta as duas coisas que eu faço e tenho paixão”, resumiu.

Carol, que já ilustrou a seção Traço Livre da edição 409 do jornal Unidade e ilustra oportunamente mais esta edição, reconhece que o formato do jornalismo em quadrinhos está crescendo no Brasil, e alegra-se que o Prêmio Vladimir Herzog tenha premiado sua reportagem realizada neste formato. Segundo ela, “o desenho é uma ferramenta de comunicação que possibilita acessar lugares que são difíceis de se registrar a imagem, possibilita uma aproximação com a fonte muito interessante justamente por não ter a barreira do registro. Muitas vezes [as fontes] são pessoas vulneráveis que não querem ser identificadas e o jornalismo em quadrinhos tem essa vantagem em relação a outros formatos que precisam de registro de imagem”.

Entre os trabalhos premiados que expõem problemas sociais jamais superados figuram a produção jornalística em áudio O que os olhos não veem e a produção multimídia Mortes Invisíveis.

Enquanto a reportagem em áudio, produzida pela Agência Pública, revela como o racismo estrutural, existente na sociedade brasileira e perpetuado pela Justiça, condena e criminaliza jovens pretos e periféricos inocentes, a produção multimídia publicada pelo UOL revela valas clandestinas que ocultam corpos de pessoas desaparecidas por ações criminosas de que nem mesmo o Estado tinha conhecimento. A utilização de valas clandestinas no país, vale lembrar, é resquício da ditadura militar brasileira, que teve seu fim marcado pela anistia de militares torturadores, os quais jamais foram punidos pelos crimes cometidos durante o regime de exceção, entre os quais o uso de valas clandestinas para ocultar o corpo de presos torturados e mortos.

Ciro Barros é vencedor na categoria áudio juntamente com a equipe de reportagem da Agência Pública e já havia levado a menção honrosa em 2017. Embora esteja feliz com o prêmio e com o reconhecimento de seu trabalho, Barros entristece-se pelo fato de ainda ter de produzir material sobre a existência de uma engrenagem que leva pessoas à prisão injustamente. Segundo ele, ao longo da reportagem, houve a tentativa de descrever os mecanismos desta engrenagem como a questão dos reconhecimentos, o peso do depoimento dos policiais, o racismo e, inclusive, o papel da mídia, que se divide entre pressionar pelo bom funcionamento da Justiça e facilitar que as pessoas sejam presas de forma injusta. “No fim, a gente mostra mais uma face da nossa institucionalidade, que é muito fraca e muito falha em servir a todos os segmentos da população. Uma grande parcela da sociedade, que são os pobres, negras, as mulheres e os grupos de minorias, como se chamam, infelizmente não tem a atenção plena de seus direitos. A importância de trazer essa temática é de também mostrar com o jornalismo, com histórias reais e fatos o quanto a gente tem essa ferida aberta no Brasil”, relatou Barros.

Entre os trabalhos jornalísticos que denunciam problemas sociais que se agravaram nos últimos anos, sob o governo Bolsonaro, figuram a produção em texto Cercados e vigiados – PF legaliza seguranças que aterrorizam moradores de antiga usina de açúcar em Pernambuco; a produção em vídeo Crianças yanomami sofrem com desnutrição e falta de atendimento médico e o livro-reportagem Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo. Tais trabalhos denunciam desde a prática ostensiva da violência no campo até o descaso com a população indígena e o meio ambiente por meio da devastação das florestas e dos territórios dos povos originários. Alice de Souza é a jornalista vencedora na categoria texto. Para ela, vencer o prêmio “é um sinal de que tenho feito não só um trabalho de qualidade, é um reconhecimento. Mas também de que é um trabalho que eleva a consciência social e tem cumprido o papel de defender uma sociedade mais justa, menos desigual. É o compromisso de atuar permanentemente na luta pela democracia”, declarou.

A reportagem de Alice é fruto de uma bolsa de reportagens oferecida pelo The Intercept Brasil a profissionais negros. Para ela, o prêmio reforça a necessidade de romper estigmas e abrir espaços para a diversidade dentro do jornalismo. “Isso garante que a gente tenha acesso a um jornalismo de qualidade e consiga visibilizar violações de direitos humanos que estão acontecendo no interior de algumas regiões, como foi o caso da matéria que eu fiz”, destaca.

A matéria de Alice que foi premiada retrata como a violência no campo ganhou, nos últimos anos, um reforço com o governo Bolsonaro. “Temos no Brasil, hoje, uma questão complexa e difícil, que é um discurso bélico, armamentista e genocida, que favorece acesso a armas, deturpa o conceito de violência e segurança pública. Então, a gente vê que está tudo muito errado e muito equivocado e esse Brasil de 2022 e de Bolsonaro normaliza isso. E não só normaliza como normatiza; o que é muito pior, porque assim há disputas, há conflitos como esse de Jaqueira que não deveria sequer estar existindo”, reflete.

“Você sai da premiação com mais e mais vontade de fazer jornalismo e de lutar pela defesa dos direitos humanos. E é como se a gente renovasse um pouco das nossas energias para lidar com esse momento tão complicado e assustador que temos visto no Brasil nos últimos anos”, declarou Alice. E que assim seja, para todos os profissionais que inscreveram as 528 produções jornalísticas da 44ª edição.