Existe verdade factual sem jornalismo?

por Eugênio Bucci

Era uma vez, no partido. Faz uns trinta anos, por baixo. Estávamos numa sede do PT em São Paulo. Instalações modestas. O chão de tacos não combinava com escrivaninhas acinzentadas e as carteiras escolares de fórmica branca, com armações de metal em preto fosco. Mais de vinte circunstantes se acomodavam meio que de qualquer jeito. Os que estavam no centro, usavam as carteiras. Outros, numa beirada, se recostavam nas mesas. Um terceiro grupo se mantinha de pé, contornando a reunião.

Era de noite. Na pauta, a ideia de lançar um jornal de esquerda em São Paulo, articulado por jornalistas ligados ao PT. Numa das cadeiras centrais, Perseu Abramo, de gravata, prestava atenção. A mão no queixo acentuava os vincos no rosto. Ele tinha o hábito de pedir a palavra só ao final e, quando pronunciava a primeira sílaba, o silêncio dos demais o reverenciava.

De pé, olhos apertados, Raimundo Pereira escutava as teses revolucionárias dos companheiros. Ouvia-se “imprensa burguesa” pra cá, “grande mídia” pra lá, “democratização dos meios de comunicação” pra todo lado. Os discursos prenunciavam o futuro magnífico do semanário, em que “nossos” intelectuais desbancariam o embuste dos jornalões.

O levante jornalístico-operário-estudantil já raiava no céu da pátria, com seus artigos chatos e revolucionários, quando Raimundo falou, com objetividade matemática. Disse que o jornal não deveria se ocupar de opiniões, em que pese revolucionárias, mas de reportagens, para contar as histórias que o poder escondia e revelar os números que o mesmo poder sonegava. E advertiu: — Revolucionária é a informação! A informação!

O orador erguera um pouco acima da cabeça as duas mãos, que oscilavam para a frente e para trás, no ritmo das palavras, em eloquência gestual. Se havia algo que uma redação jornalística poderia fazer em vez de se pavonear por ser de esquerda, era apurar, checar, cruzar, traduzir, relatar, editar, explicar, interpretar e publicar informação. Saudações, Raimundo. Aquele abraço.

Nas poltronas da Esplanada.

Faz uns quinze anos, talvez um pouquinho mais. O local desta vez é uma repartição pública em Brasília. A bandeja do cafezinho vem e vai. Mesmo quem toma sem açúcar sente o doce na borda da xícara, que não foi lavada direito. Altos funcionários da República, em número não superior a meia dúzia, discorrem sobre o mal que a “grande imprensa” causa à imagem dos ministros e, logicamente, ao Brasil. Logo se vê que se trata de um corpo burocrático integrado por experts em media criticism, para os quais o governo é a mais sublime tradução do Brasil. Falam em “mídia hegemônica” e “guerra de narrativas”. Dever de informar? Nunca. Alegam que o “nosso” governo tem, isto sim, o “direito” de usar meios estatais para difundir “argumentos” a seu favor. Se a “mídia hegemônica” força as “narrativas” para derrubar o governo, o Estado que revide e force as “narrativas” para o lado oposto. Afinal, a verdade resulta da média aritmética entre duas distorções.

Um mérito público.

Tristemente, alguns expoentes da esquerda tropical sucumbiram a rasputins extemporâneos. Assim como o rei Édipo mandava chamar Tirésias quando não sabia o que fazer, andaram convocando marqueteiros com ares de adivinhos. Deu no que deu.

O que nos redime é que o mal do rasputinismo não foi absoluto. Muita gente íntegra não se dobrou. Dilma Rousseff não se dobrou. Em três lances históricos, seu governo se antepôs às mentalidades manipuladoras. O primeiro, a Lei de Acesso à Informação, deu mais vitalidade à cultura democrática no interior da máquina pública e impôs mais rigor ao dever do Estado de informar a sociedade. Saiu ganhando o direito à informação, como comprovam os muitos repórteres que obtiveram informações preciosas graças à nova lei.

O segundo lance foi a Comissão Nacional da Verdade. Com ela, pudemos avançar na apuração estritamente factual das graves violações dos direitos humanos cometidas por agentes de Estado durante a ditadura militar. Ganhou de novo o direito à informação. Perderam, ao menos um pouco, os que pretendem sepultar a História junto com os cadáveres esquartejados de desaparecidos políticos.

O terceiro lance veio com o Marco Civil da Internet, outra vitória do governo Dilma, que consagrou a privacidade, a liberdade de expressão e a neutralidade de rede como princípios da comunicação digital: o direito à informação prevalece sobre interesses econômicos ou governamentais. Um bom nome para isso é democracia.

O plágio como tragédia.

No livro Mein Kampf, de Adolf Hitler, lançado em 1925, a verdade não passa de um produto fabricado pela propaganda, o resto é conversa mole de intelectual. O best-seller nazi enxovalha a imprensa e – paradoxo – tripudia sobre os burgueses e os pequenos burgueses. O líder do “nacional socialismo”, oportunista e fraudulento, cimentou seu ideário de extrema direita com um palavreado inspirado na literatura socialista, o que gera tergiversações de má fé até hoje. Recentemente, um ministro brasileiro declarou que o nazismo era de esquerda. Com essa afirmação, reeditou a mania hitlerista de falsificar a História. O nazismo nunca foi de esquerda, mas dizer que o nazismo tenha sido de esquerda é uma fraude tipicamente nazista.

O nazismo acabou, mas sua pestilência continua. O Mein Kampf é o manual de redação da indústria das fake news – manual que ninguém assume publicamente, ainda que, outro dia, um secretário de Cultura do atual governo, ao fazer um pronunciamento oficial em vídeo sobre “arte nacional”, tenha imitado Goebbels, num vexame tão desclassificado que lhe custou o posto. Os nazistas enrustidos se apresentam como defensores da liberdade e, em mais uma confusão retórica que se filia à propaganda do Terceiro Reich, acham que os disseminadores de desinformação caluniosa estão em pé de igualdade com profissionais de imprensa.

No dia 28 de maio de 2020, o presidente da República foi até a entrada do Palácio da Alvorada para atacar, aos berros, o inquérito do Supremo Tribunal Federal que desbaratou páginas que fabricavam e distribuíam mentiras, declarações de ódio e ofensas nas redes sociais:

— Querem acabar com a mídia que tenho a meu favor!

Está tudo aí. Na visão do governante, as fake news são uma “mídia” como outra qualquer. Em seu vocabulário, a opinião baseada em fatos e o discurso de ódio baseado em infâmias têm o mesmo estatuto moral.

OS NAZISTAS ENRUSTIDOS SE APRESENTAM COMO DEFENSORES DA LIBERDADE E ACHAM QUE OS DISSEMINADORES DE DESINFORMAÇÃO CALUNIOSA ESTÃO EM PÉ DE IGUALDADE COM PROFISSIONAIS DE IMPRENSA

Um breve juízo de fato.

Autoritários gostam de repetir que não existem fatos, apenas versões. Com isso, reafirmam a fantasia obtusa de que nenhuma forma de realidade (nenhum princípio de realidade) pode abalar sua convicção (ou seu princípio de prazer sádico). Alguns desses estelionatários do debate público querem usurpar o pensamento de Friedrich Nietzsche – e, também nisso, imitam os nazistas. Como se sabe, o filósofo alemão disse que “não há fatos, somente interpretações”. Ocorre que, quando escreveu essa frase, Nietzsche não pretendia rechaçar a existência de acontecimentos reais, apenas contestar os positivistas, que se julgavam os verdadeiros (e únicos) intérpretes dos fatos, em nome dos quais brandiam sua intransigência bélica. Foi contra essa impostura filosófica que Nietzsche se insurgiu, o que fica nítido quando relemos o trecho inteiro, que está nos “fragmentos póstumos”:

— Contra o positivismo, que atesta ao fenômeno, “só existem fatos”, eu objetaria: não, justamente não há fatos, somente interpretações. Não podemos constatar nenhum factum “em si”: talvez seja um nonsense querer este tipo de coisa. Nada mais óbvio. Fatos só podem ser relatados quando apreendidos na linguagem daquele que os observa e, portanto, os interpreta. Nada mais certo. Coisa muito diferente é dizer que tudo o que existe não passa de uma “versão”, como dizem os seguidores tardios dos métodos de comunicação prescritos por Adolf Hitler.

Há quem acredite que o êxito clínico da hidroxicloroquina contra a covid-19 é diretamente proporcional ao entusiasmo com que o governante fala do medicamento. Para esses, o vírus (um fato) não pesa, a substância química (outro fato) também não, e as políticas públicas sérias e responsáveis são coisa de “maricas”; só o que terá peso para reverter a pandemia é a propaganda, ou seja, a torcida organizada, as claques e as milícias virtuais. O problema do sujeito que acredita nisso não é propriamente ideológico, mas cognitivo – ele não entende o que seja o estatuto dos fatos, isso não lhe entra na cabeça. Em seu juízo raso, a obstinação da vontade, em forma de propaganda, move montanhas de fatos, extingue vírus letais, extermina o comunismo e “cura” os gays, como num gibi ruim de super-herói fajuto.

A política no meio disso.

Fatos. Não há política sem eles. No ensaio Verdade e política, Hannah Arendt diz que “os fatos e os acontecimentos são a própria textura do domínio político”. Isso significa que a política não é pensável a não ser como um tecido cuja substância tem parte com o princípio de realidade. No horizonte da democracia, a ação política reúne as pessoas em torno de seus impasses comuns, coletivamente percebidos e concebidos como fatos, com o objetivo compartilhado de discutir, entre consensos e dissensos, soluções racionais e viáveis. A política na democracia supõe o reconhecimento dos fatos, da alteridade e da busca de acordos racionais.

Se tiramos os fatos da política, o que vai sobrar? Quase nada. Não sobra sequer a política. Se, nos debates entre os cidadãos reunidos em público, não houver mais a referência aos fatos, a própria razão terá sido sacrificada, pois esta, desde os pré-socráticos, é o pensamento que observa os fatos para ultrapassar a barreira das crendices e do obscurantismo, que são irracionais. Logo, uma política sem fatos é também uma política irracional – e, como essa expressão, política irracional, é uma contradição em termos, resulta evidente que a política sem fatos não é mais política, mas fanatismo.

Disso decorre que negar os fatos, além de ser uma forma extremada de negar a razão que os conhece, constitui um ataque frontal contra a política e contra os padrões de convivência em que somos solicitados a nos reconhecer como sujeitos racionais, iguais em direitos e dignidade. O negacionismo só pode ser interpretado nessa chave: mais do que a negação da covid-19, do desmatamento, do racismo, do aquecimento global, da esfericidade da Terra, da desigualdade social ou da natureza do nazismo como coagulação de extrema direita, é uma forma de rejeição da capacidade coletiva de apreender racionalmente o que se passa e de estabelecer pontes de entendimento. O negacionismo substitui a autonomia do sujeito pela obediência ao chefe. O negacionismo repudia a civilização.

Uma pergunta.

Não há democracia se não houver política e não há política se não houver padrões civilizados de convivência e modelos racionais de conhecimento dos fatos. Mas, se a política democrática pode existir, e pode, nem que seja como projeto em construção, a quem ela atribui a função social de verificar os fatos?

É claro que qualquer pessoa pode atestar que existe um buraco no meio da rua. Qualquer pessoa pode detectar um fato. Mas, na complexidade das interações que envolvem a sociedade civil e o Estado, os atores aos quais se requisita a verificação social dos fatos não são cidadãos aleatoriamente sorteados sem critério: são atores institucionais. Nesse sentido, é bem reduzida a lista dos sujeitos institucionais que são encarregados de verificar os fatos e sobre eles dizer a verdade.

A Justiça integra essa lista. Uma sentença bem fundamentada ou uma petição bem elaborada vêm amparadas em razões de direito e em razões de fato, sem o que não se faz justiça. Peritos e testemunhas ajudam nisso. Os historiadores também são chamados a examinar os fatos, basta ver a participação central que tiveram na Comissão Nacional da Verdade. Os procedimentos científicos também lidam com fatos. A Filosofia, de seu lado, pensa sobre a natureza da verdade e assim dá vida à razão que vai conhecer a dimensão dos fatos.

Hannah Arendt, quando arrolou aqueles a quem cabe dizer a verdade sobre os fatos, mencionou ainda os repórteres. Não há como discordar dela. A Justiça verifica os fatos no longo prazo, a História os recupera a posteriori, a ciência faz isso num laboratório, mas só a imprensa tem meios para reportar os fatos enquanto eles acontecem, pois só ela, com seu método socialmente legitimado e seu alcance público e universal, dispõe dos recursos discursivos credíveis para registrar em público os acontecimentos, sejam eles a declaração de um presidente biruta, uma descoberta científica ou uma falcatrua nas contas públicas. Eis por que a democracia inventou a liberdade de imprensa e, dentro dela, o jornalismo. Não há outro método, simplesmente não há. A imprensa não entrega a verdade acabada a ninguém (isso é um mito mercadológico), mas, ao manter acesa e pública a discussão criteriosa sobre os fatos e os acontecimentos, protege os cidadãos e a sociedade contra a mentira, sobretudo contra aquela que vem do poder.

Para cumprir seu papel, jornalistas evitam se associar ao poder, mesmo quando virtuoso. Pelas mesmas razões, repelem as formas dogmáticas de olhar o mundo, sob o risco de perderem aquilo que os torna fundamentais. Os dogmas partidários são ruins porque são dogmas, além de partidários; os dogmas da extrema direita são piores, porque são antidemocráticos e antijornalísticos.

Verificados por meios legítimos, os fatos fornecem a base mais sólida e a baliza mais confiável para o diálogo político, mas, ao mesmo tempo, são o que há de mais frágil. O poder tem meios de escondê-los e, quando não limitado, consegue desaparecer com seus indícios. Marcantes e fugidios, os fatos mudam a nossa vida e depois somem da nossa memória – a gente se esquece deles, assim como se esquece do endereço das sedes do PT na cidade de São Paulo. Nesse campo, a fortaleza e a fugacidade são o mesmo ente. Pensemos na missão do jornalismo, que consiste em informar sobre os fatos e oferecê-los ao debate público para que a sociedade fiscalize e critique o poder: o que pode haver de mais grandioso e de mais vulnerável?

Disso decorre, por fim, que o jornalismo que protege a política democrática precisa ser por ela protegido, porque “revolucionária é a informação” e porque, sem jornalismo, não teríamos acesso coletivo, independente e imediato à verdade factual.

Eugênio Bucci, jornalista profissional sindicalizado desde 1984, é professor titular da ECA-USP e autor, entre outros livros, de Sobre ética e imprensa, O Estado de Narciso e A forma bruta dos protestos (Companhia das Letras) e Existe democracia sem verdade factual? (Estação das Letras e Cores).