Entrevista com Rubens Valente: “Vivemos o momento mais grave para o jornalismo desde o fim da ditadura”

por Décio Trujilo, Joanne Mota, Larissa Gould, Paulo Zocchi, Priscilla Chandretti

Nascido no Paraná, em Goioerê, Rubens Valente se mudou para Mato Grosso do Sul em 1979 e tornou-se repórter em 1989. Em Cuiabá, começou a trabalhar na então Agência Folha, da Folha de S.Paulo. De lá para cá, o jornalista passou, entre outras empresas, por O Globo, Jornal do Brasil e UOL. Ganhou 20 prêmios nacionais e internacionais, como o Esso de Reportagem (2011), além de cobrir momentos históricos do país, como os recentes assassinatos do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips.

Embora seja um repórter consagrado, Rubens Valente virou notícia mesmo depois de sua condenação pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em maio deste ano. A decisão penalizou o autor do livro Operação Banqueiro por citações ao ministro da corte Gilmar Mendes. A obra relata, em minuciosa reportagem, o caso Daniel Dantas, banqueiro preso, em 2008, em operação da Polícia Federal.

De autoria do próprio ministro do STF, a ação judicial contra o jornalista alega “danos morais”. Valente foi condenado a pagar indenizações de mais de R$ 300 mil. Há também a determinação de que, caso a obra receba nova tiragem, tenha incorporadas, na íntegra, a petição inicial da ação de Mendes e a sentença judicial, somando ambas mais 200 páginas – decisão que equivale a um ato de censura.

O caso foi denunciado pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e seus sindicatos associados e levado ao congresso da Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ), em junho de 2022, em Omã, que aprovou uma posição unânime de apoio ao jornalista.

Nesta entrevista, Valente nos conta um pouco sobre sua carreira, narra o impacto da condenação pelo STF e a importância da solidariedade que recebeu, fala sobre a cobertura jornalística em áreas de conflito e também sobre a importância do jornalismo e de suas entidades representativas para o pleno exercício da democracia.

Como a atual conjuntura de ataques sistêmicos à liberdade de expressão influencia no trabalho jornalístico?

Vou chover no molhado, mas tem de ser repetido: vivemos o momento mais grave do jornalismo desde o fim da ditadura.

A imprensa sempre teve uma relação atritada com o poder ao longo desses anos todos de democracia. Seja mais, ou menos, houve atritos que ganharam repercussão. Esta relação deve ser assim, pela própria natureza da imprensa de buscar a contradição. Não é novidade. Esse tipo de atrito vinha ocorrendo, e eu acho até salutar.

Mas o que estamos vivendo é coisa completamente diferente. É uma tentativa de destruição do papel do jornalista como intermediário entre o fato e o público, a destruição do papel como observador ou intérprete da realidade. O presidente da República quer destruir essa função. Por isso, nos chama de urubus, nos manda bananas. Esse processo de erosão da imagem dos jornalistas é pensado, é estratégico. Bolsonaro quer falar direto com o seu público, pelo WhatsApp e pelas redes sociais, e tem conseguido…

O jornalista, a depender do governo atual, não existiria; a realidade é essa. Isso se manifesta de diversas formas: com a fala incendiária, irresponsável, dele (porque insufla seu eleitorado contra os jornalistas que estão em campo, trabalhando, tentando fazer seu ofício), com seu discurso de ódio que estimula a violência no final da cadeia. Também se manifesta na recusa da prestação das informações aos jornalistas. Já perdi a conta de quantos e-mails mandei nos últimos três anos, telefonemas, jamais respondidos, em todas as áreas que vocês possam pensar. Também se manifesta na quase anulação da Lei de Acesso à Informação, por meio de “truques” que o governo foi implantando, como inserir informações pessoais em documentos gerais para torná-los secretos por 100 anos.

Ele desencadeou uma guerra ao jornalismo. E nesse processo de radicalização, foi ganhando a adesão de servidores do primeiro escalão, lógico, e também do segundo e do terceiro. Você vê técnicos da Controladoria Geral da União (CGU), que deveriam trabalhar pela transparência, apoiando o discurso anti-imprensa nos despachos. Ou seja, se espalhou pela máquina governamental como um todo.

Acompanhando marcha do MST nos anos 90 em Mato Grosso / Foto: Arquivo pessoal

POR QUE A LÓGICA
DO MINISTRO
PREVALECEU?
TENDO A ACREDITAR
QUE É PORQUE ELE
EXERCE UM ALTO
PODER DENTRO
DO JUDICIÁRIO

Falando sobre o seu caso com o ministro Gilmar Mendes. Quais são os principais erros que marcaram o processo?

Acho que o meu caso tem aspectos importantes, começando pela forma como transcorreu a ação. Não foi apresentada nenhuma prova, não houve perícia no meu livro. Eu nunca fui ouvido! Nenhuma testemunha nunca foi ouvida! Fui condenado pelo que o ministro Gilmar Mendes disse na petição. A condenação é basicamente uma réplica do que ele falou, muito embora o juiz de primeira instância tenha negado tudo (as instâncias superiores reverteram a decisão).

O outro aspecto é que condenou-se o meu livro ao banimento no Brasil. Pela primeira vez na história, o Supremo Tribunal Federal mandou que, na próxima edição, eu insira a petição do ministro e a decisão final do Judiciário. Isso torna inviável o meu livro economicamente. Também do ponto de vista intelectual, moral e ético, recuso-me terminantemente a fazer uma fraude no meu livro, pois incluiria 200 páginas que não são de minha autoria.

O Gilmar Mendes, que é um escritor reconhecido, poderia fazer um livro próprio dele. É da democracia. E dizer que meu livro é uma porcaria. Ele, como figura proeminente, certamente teria uma editora. Mas ele optou pelo caminho de usar a própria Casa para fazer isso.

A saída possível, nesse caso, é uma mudança de cultura no Judiciário. O Judiciário tem que ter o cuidado e a atenção de perceber que, quando um magistrado move uma ação contra alguém, contra qualquer pessoa, atenção: não podemos transformar esse processo num rito sumário. É preciso o contraditório, é preciso haver uma perícia, uma segunda voz.

Eu queria que meu livro fosse analisado por professores de jornalismo, de direito ou de letras. O ministro alega que eu escrevi coisas que não escrevi. O processo é kafkiano nesse sentido.

Por que a lógica do ministro prevaleceu? Tendo a acreditar que é porque ele exerce um alto poder dentro do Judiciário, tem um status enorme. Um ministro do Supremo é ouvido, por exemplo, em nomeações para o segundo e o terceiro escalões em tribunais federais. A imprensa relata almoços, conversas, jantares, do senhor Gilmar Mendes com os presidentes da República, da Câmara, do Senado. Então, a paridade de armas inexistiu nesse caso: é o que dizemos em todo lugar. Eu, um mero repórter que escreveu um livro, contra um ministro que dialoga e tem uma ampla influência no Judiciário, que vai julgar o que ele alegou.

O Judiciário deveria, a partir de agora (mas creio que não vai acontecer), ter extremo cuidado quando um juiz move uma ação. Sendo bem sincero, se conseguíssemos perícias ou testemunhas dizendo que meu livro foi difamatório, eu não teria nem discutido, nem teria recorrido agora à Organização dos Estados Americanos (OEA). Eu me renderia às evidências. Mas não foi o que aconteceu; foi a palavra dele que me condenou. É preciso que os próprios magistrados se conscientizem desse problema, desse conflito de interesses.

O Conselho Nacional de Justiça deveria justamente fiscalizar isso…

É uma dessas coisas bem brasileiras: o CNJ não tem o poder de olhar o Supremo. Ele existe para todo o Judiciário, exceto para o STF.

Eu e meus advogados acreditávamos, até o final, na Justiça. Hoje, quero dizer que minha confiança no Judiciário é zero. Tanto é que fomos à OEA para denunciar o que consideramos um atentado à liberdade de expressão.

Veja ainda a questão do valor da indenização à qual fui condenado, de R$ 319 mil. Já existe uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) do próprio Supremo dizendo que, quando um agente público ganha uma ação de alguém, o valor deve ser módico. Esta é a determinação do plenário do STF, avaliando que um valor alto atrapalha o “necessário escrutínio da cidadania”. Pois no meu caso aconteceu o contrário, e os parâmetros legais não foram observados.

Com base nessa decisão, como você vê o papel do Supremo no quadro institucional do país hoje, quando o próprio STF ataca a liberdade de imprensa?

Quando eu escrevi o livro, a minha intenção era mostrar como um processo judicial pode ser guiado por razões pessoais, convicções, ódios. Sempre digo a todos os colegas: não existe juiz técnico. A decisão judicial é política e é técnica. A intenção do meu livro era desmistificar a técnica do direito, que vai até certo ponto. Aliás, é bom que seja assim, senão teríamos um computadorzinho: a gente alimentaria o computador, e ele soltaria a decisão. Então, fazer política, em si, nem sempre é ruim. É importante que tenha conteúdo político. Agora, o que eu pretendia alertar no meu livro é que essas decisões não podem ser encaradas de forma ingênua pela imprensa, por todos nós. Não sei quem cunhou a péssima frase “decisão judicial não se discute, se cumpre”. Eu sempre digo: “Decisão judicial se cumpre e se discute”. Do contrário, teremos determinando os rumos do país 11 pessoas que não foram eleitas para isso; todas foram indicadas num contexto político.

Eu nunca quis ser notícia, o repórter foge disso. No meu caso, infelizmente, tornei-me notícia, o que ilustrou tudo o que escrevi no meu livro.

O Supremo mandou um recado ao conjunto da sociedade brasileira: “Existe um limite à liberdade de expressão: nos questionar. Não mexam conosco.”

Já existe um impacto entre os jornalistas, que pensaram dez vezes antes de contar a trajetória de Kassio Nunes Marques, ou de Toffoli. Eu entendo a baixa repercussão do meu caso e de outros do gênero. A imprensa tem um medo terrível do que possa acontecer. Esses ministros podem definir a saúde financeira de uma empresa, podem cassar uma concessão de TV: basta que entendam que há os pressupostos, o que, novamente, é uma questão política.

EU NUNCA QUIS SER
NOTÍCIA, O REPÓRTER
FOGE DISSO. NO MEU
CASO, INFELIZMENTE,
TORNEI-ME NOTÍCIA,
O QUE ILUSTROU TUDO
O QUE ESCREVI
NO MEU LIVRO

Trabalhando na pesquisa para seu livro em 2013 na cidade de Benjamin Constant (AM) / FOTOS ARQUIVO PESSOAL

Como a decisão do STF te afetou no âmbito pessoal, de vida e de trabalho, e, no segundo momento, as manifestações das entidades dos jornalistas?

Afetou bastante. O principal é o enorme tempo perdido. Em todo esse processo de oito anos, a cada recurso, a cada movimentação, eu tinha que parar tudo o que estava fazendo. Tudo isso consome tempo. Além disso, uma publicação chamada Consultor Jurídico usou meu livro para uma campanha de difamação, com mentiras atrás de mentiras. Para você desmontar isso é quase impossível. Taí o sentido da campanha difamatória: colocar a dúvida, colocar a mancha.

Além de tudo isso, há o desgaste econômico. Gastei, nesses oito anos, uma soma considerável com honorários advocatícios. Meu contrato com a Geração Editorial previa metade dos custos para mim e metade para a editora. Assim, também vai contaminando o trabalho jornalístico, porque a empresa sabe que o ministro tem uma demanda contra mim. Até que ponto é interessante para a empresa manter um profissional com uma disputa desse tamanho com um ministro do STF?

Depois, houve o grande desgaste da condenação, inclusive na família e com meus amigos. Por exemplo, no Dia das Mães, minha mãe, que tem 93 anos, me telefona e pergunta: “Rubens, é verdade que você vai ser preso pelo Supremo?”. Então, tendo trabalhado dentro da lei, você tem que explicar à sua mãe de 93 anos que não é um fora da lei. Os danos são enormes.

Quanto às entidades de jornalistas, foi uma grata surpresa que muito me comoveu. Perceber essa solidariedade de pessoas que são meus amigos e também de pessoas com as quais falei apenas uma vez na vida. Para mim, o que aconteceu mostrou que valeu a pena. A solidariedade, inclusive das entidades jornalísticas, me surpreendeu. Por esse lado, foi uma vitória do jornalismo. Das muitas doações que recebi (para pagar a indenização, NdR) – e mais de 2.500 pessoas participaram –, algumas tiveram valores expressivos, mas outras que também me emocionaram muito foram de 5 reais, 10 reais, e me mandavam mensagens dizendo: “É o que eu tenho para te ajudar agora”. Acho que é importante frisar que mais de 70% dos que me procuraram diziam: “É para a imprensa não se curvar”, “é para manter o trabalho do jornalismo”. Considero que não foram doações para mim, mas para a ideia do jornalismo. Se fosse outra pessoa, tenho a certeza de que haveria uma reação semelhante, pois as pessoas entenderam que o que está em jogo vai além do meu caso, ao virar jurisprudência.

Tivemos recentemente os terríveis assassinatos de Bruno Pereira e Dom Philips no Vale do Javari. Como tem sido a cobertura jornalística na Amazônia?

Eu acho que os assassinatos do Bruno Pereira e do Dom Philips são um símbolo do que vem sendo denunciado desde 2019. Mostra como o discurso do presidente Bolsonaro tem sido usado por vastas regiões no interior do Brasil para justificar crimes ambientais. Como houve um empoderamento desses setores que desafiam a lei nas terras indígenas e nas unidades de conservação.

O Bruno é morto no contexto de uma traição do Estado brasileiro a ele. Bruno era um técnico indigenista aprovado em concurso público em 2010, na Funai, e desempenhava aquilo que era a sua função legal e ética: combater os ilícitos na terra indígena Vale do Javari. E quando vem o governo Bolsonaro, ele é extirpado do comando das ações da Funai. É destituído e não se conforma, porque sabe que, lá na ponta, os indígenas sofrem com o aumento das invasões, a insegurança, a violência. Então tira licença e volta ao Vale do Javari, agora na condição de consultor da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) Toda a região entendeu o que aconteceu. Todos os malfeitores da região souberam que o governo virou as costas para o Bruno.

Conhecia o Bruno há nove anos e tenho a certeza da correção de suas ações. Era uma pessoa que não gostava de holofotes. Várias vezes, solicitei-lhe uma entrevista, e ele me deu uma na vida – uma entrevista em nove anos. A morte acontece nesse contexto do abandono do Estado na região e do empoderamento dos grupos que desafiam as leis que protegem o meio ambiente.

Infelizmente, tivemos também o Dom Philips, repórter super conceituado, muito querido e reconhecido pelo seu trabalho na Amazônia. O Dom, como todo bom repórter, fareja a notícia e vai onde ela está. Olhando agora, podemos ver o quanto ele estava correto no que fez. Percebeu o papel do Bruno nesse contexto histórico, viu a gravidade do que estava acontecendo e foi ao encontro do Bruno para narrar a sua atividade. Então, o Dom não se expôs a nenhum perigo indevido; estava fazendo o seu trabalho de repórter.

Refizemos essa viagem de Dom e Bruno pela Agência Pública e pude constatar que é um rio tranquilo, largo, sem corredeiras, com as margens habitadas. Esse trecho no qual foram assassinados é fora da terra indígena, ou seja, é um lugar no qual não há indígenas isolados. Era um trabalho jornalístico totalmente pertinente, correto. De certa forma, até seguro e simples, pois uma hora e meia de viagem na Amazônia não é nada. Isso tem que ser repetido, porque o presidente da República, de forma injuriosa, inflamatória, disse que esse trabalho do Dom era uma aventura, e nunca foi, era uma viagem simples.

A última mensagem que eu troquei com Bruno foi quando ele colaborou com a vaquinha para pagar a indenização do Gilmar Mendes. Eu agradeci o apoio, e disse a ele que não sabia como poderia pagar um dia. E ele disse: “Não, você pode pagar com uma cerveja e resolva essa bronca logo”. De forma triste, amarga ironia, sou eu colaborando com uma vaquinha para as famílias de Dom e Bruno.

Você chegou ao Vale do Javari poucos dias depois do desaparecimento de Bruno e Dom. Como foi fazer essa cobertura? Qual foi sua impressão da apuração do crime?

Foram 21 dias em Atalaia do Norte, a cidade mais próxima do Vale do Javari. Eu cheguei em 9 de junho, quatro dias depois do desaparecimento, e antes que os corpos fossem encontrados. Nesse momento, havia uma intensa presença dos meios de comunicação, tanto nacionais quanto estrangeiros.

É o momento de trabalho mais intenso, o factual. Depois, vem um segundo momento, quando as equipes começam a ir embora. Na Agência Pública, dissemos: “Vamos ficar, porque agora é que algumas realidades podem vir mais à tona”. E foi o que aconteceu.

Fomos hostilizados por dirigentes das entidades de pescadores no ginásio de Atalaia. A partir do microfone, jogaram a plateia contra os jornalistas, dizendo que “a Globo, o SBT, a Record estão falando mal do município, dos pescadores”. Ali, a gente começou a ver a outra face, que até então não se via, porque a população estava impactada com tudo. Comecei a ver a dimensão do risco da cobertura na região.

Depois do décimo dia, o cenário mudou de vez. Um morador aproximou-se e começou a me questionar por que não divulgávamos a morte de não-indígenas por indígenas isolados. Crescia a tensão. Começamos a ouvir justificativas para os assassinatos. E olha que é uma região não-bolsonarista: na campanha de 2018, Haddad teve 82% dos votos no 2º turno.

Num terceiro momento, veio um problema com as Forças Armadas. Os indígenas, numa audiência, começaram a denunciar a pouca ação do Exército no combate aos crimes na região. Perguntei ao general: “Como o senhor responde a essas críticas?” Ele não quis nem me dar o sobrenome dele. Eu me apresentei, e ele respondeu: “Mande um e-mail ao Ministério da Defesa”. Neste momento, fui dar um passo atrás para acompanhá-lo e levei um encontrão de um coronel, barrando o caminho. Falei que não precisava me empurrar, e afirmei: “Lamento, general, que o senhor não queira falar. Vou mandar um e-mail para Brasília, mas o senhor está aqui ao meu lado, e as críticas são ao senhor, ao Exército local.”

Na sequência, sentei-me e abri o computador para escrever. Meu colega José Medeiros, repórter fotográfico, percebeu tudo nas minhas costas: registrou o coronel que tinha me dado um encontrão conversando com outro militar, que, na sequência, começou a fotografar pelas minhas costas a tela do meu computador. José fotografou tudo isso, abordou o militar dizendo que ele não podia fazer isso, perguntando por que ele estava fotografando a minha tela. O militar se assustou e saiu da sala. Fui até o corredor e gravei em vídeo ele dizendo: “Não vou te dar nenhuma informação”. Ele não negou. Moral da história: não é simples fazer jornalismo nessa região.

OS ASSASSINATOS DO BRUNO PEREIRA E DO DOM PHILIPS SÃO UM SÍMBOLO DO QUE VEM SENDO DENUNCIADO DESDE 2019

Entrevistando o líder yanomami Davi Kopenawa em Brasília em 2018 / Foto: ARQUIVO PESSOAL

ESSE É O PLANO
BOLSONARISTA PARA
O INDÍGENA: QUE ELE
DEIXE DE SER

Como a política de Bolsonaro impacta em tudo isso?

O governo Bolsonaro é apoiado por pelo menos três grandes forças: o agronegócio, as Forças Armadas e um grupo de evangélicos (é importante nunca generalizar). Essas três forças, infelizmente, também têm uma visão própria do indígena. Esses três grupos estão ditando a política indigenista de Bolsonaro. E um desses, em especial, comandou o Brasil por 21 anos, que são os militares. É impressionante encontrar esses paralelos, de políticas indigenistas que foram usadas e depois abandonadas, arquivadas pela democracia, e que retornam 40, 50 anos depois. Uma visão que é, no final das contas, genocida.

Os governos civis desde 1985 passaram a fazer uma reflexão sobre o papel do indígena na vida brasileira, e começaram a elaborar uma ideia de que cabe a eles, sim, sair ou não do isolamento voluntário, dar opinião final sobre os projetos que afetam suas terras. Essa visão começou a ganhar corpo no Brasil, dentro da máquina de Estado, na forma de instruções, portarias, definições doutrinárias etc.

Com o governo Bolsonaro, tudo isso passa a ser revisto, recauchutado, arquivado, modificado, transformado. Esse é o plano bolsonarista para o indígena: que ele deixe de ser.

É caro fazer jornalismo na Amazônia?

Infelizmente, a imprensa deu passos atrás na cobertura do Brasil. Até os anos 90, sabia-se que era necessário o olhar jornalístico sobre o interior brasileiro. Isso foi mudando: a imprensa começou a cobrir o poder. Foi um sinal inequívoco de uma decisão editorial. Os jornais tinham muitos correspondentes nos estados. Era uma visão importante, porque os jornalistas tinham relativa independência editorial para relatar problemas nos estados. Não estavam diretamente vinculados ao poder local, como a imprensa regional está.

Então, a atividade torna-se cara porque a imprensa abdicou desse papel. Se você tem uma estrutura mínima na região, o custo diminui. Mas também quero dizer que o custo da cobertura não deve ser usado como justificativa, porque cabe à imprensa encontrar os meios financeiros necessários para tanto. A imprensa deveria fazer uma reflexão profunda sobre o papel dela para o Brasil, sobre o que o Brasil representa para o veículo.

Sabemos que a busca pela audiência, pelo engajamento, dita o comportamento da mídia, mobiliza dinheiro, tudo isso. Mas sabemos que a imprensa tem um papel social, político, de formação de novas gerações também. Então, você tem um correspondente em Manaus, e a Amazônia envolve nove estados. Eu sempre digo que você tem mais brasileiros na Amazônia legal do que em São Paulo, na região metropolitana inteira. Ter um repórter só, baseado em Manaus, mostra algo muito errado.

As entidades sindicais assumiram a sua defesa e desenvolveram uma campanha em seu apoio. Aprovamos na Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ) reforçar o pedido junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Como você vê a atuação das entidades sindicais dos jornalistas?

Acho que esse trabalho é fundamental. Não só no meu caso específico, como em outros momentos, as entidades têm se manifestado, denunciando as arbitrariedades, as irregularidades. Esse trabalho, ainda mais num governo autoritário civil-militar como o nosso, torna-se imprescindível. E também no campo dos direitos trabalhistas, que reputo como da maior importância. Quantos reajustes salariais tive ao longo da vida graças às entidades sindicais. Jornalistas que eventualmente têm críticas são beneficiados pelo trabalho sindical, quer queiram ou não. Acho que tudo que temos vivido, a precarização do trabalho no Brasil, de modo geral, e em todos os níveis da vida, tem despertado uma consciência maior da necessidade de sindicalização. Uma consequência colateral dessas reformas é o aumento da consciência da necessidade da união dos trabalhadores. Ainda é pequena, mas deve aumentar. Não há outro caminho: ou os jornalistas se unem ou serão tragados cada vez mais por essa precarização. •