“Choque de gestão” desvia RTV Cultura da comunicação pública

Quando assumiu o governo de SP, Doria prometeu aumentar a audiência e gerar lucro para emissora, em detrimento do financiamento estatal, em queda há pelo menos 10 anos

Em 2016, jornalistas e radialistas entraram em greve e foram a dissídio por um Acordo Coletivo (conquistado no Tribunal) e por reajuste (negado pelos desembargadores) / Foto: Cadu Bazilevski – SJSP

Ao longo dos últimos dez anos, a Fundação Padre Anchieta (FPA) – que inclui a Rádio e TV Cultura, a rádio Cultura FM, a TV Rá Tim Bum, o canal digital Multicultura, sem contar a Orquestra Jazz Sinfônica e o Museu da Casa Brasileira – tem sofrido com a drástica redução de aporte do Estado, afetando tanto a produção da emissora, que deveria ser voltada à promoção da cultura e educação, como a remuneração dos seus profissionais.

De acordo com o site da Fundação, o governo do estado repassou mais de R$ 115 milhões em 2011. Se corrigido pela inflação, os valores recebidos pela FPA deveriam ser, em 2021, de cerca de R$ 208 milhões, mas o aporte realizado foi de apenas R$ 108 milhões – cifra que representa 52% do orçamento corrigido (veja mais no gráfico ao final).

Durante este período, o ano de 2015 foi emblemático tanto para a emissora quanto para seus trabalhadores, uma vez que o Governo do Estado cortou o orçamento repassado à emissora. No ano seguinte, sem reajuste desde 2013, 80% dos trabalhadores entraram em greve.

Somente em março deste ano, jornalistas e radialistas conquistaram um reajuste de 10,33% após oito anos praticamente sem reajuste. Desde 2013 e até 2022, os profissionais receberam apenas 3,5% de recomposição salarial. Antes do índice conquistado em 2022, a defasagem nos salários dos jornalistas chegava a 57,64%.

Na avaliação do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, o argumento da falta de recursos por parte do Estado não procede. A falta de investimento na Fundação Padre Anchieta faz parte de um projeto político que é contrário à comunicação pública. “Se o governo Doria e os governos tucanos anteriores tivessem a mínima consciência do que é a comunicação pública e sua importância para cultura, educação e cidadania, não veriam o orçamento da TV Cultura como gasto e, sim, como um investimento na população, inclusive para que se aprofunde a comunicação pública, para que se melhorem os produtos e a produção jornalística”, pontua o presidente do SJSP, Thiago Tanji.

O Estatuto da Fundação Padre Anchieta regula as condições de contratação dos trabalhadores e determina, em seu artigo 25º, que o regime jurídico de pessoal será obrigatoriamente a legislação trabalhista, salvo as relações de caráter autônomo. No entanto, não é o que se vê na TV e Rádio Cultura. Entre os jornalistas, há diferentes tipos de contratação, desde as enquadradas no regime previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) até as de “pessoas jurídicas” (PJ) e eventuais, o que configura não só um desrespeito ao Estatuto como uma fraude empregatícia que impacta diretamente nos salários pagos aos trabalhadores. “Doria não tem ideia de como fazer comunicação pública, por isso defende dinamizar e maximizar os lucros, o que é um absurdo porque não é o caráter histórico da TV Cultura. E quem sofre com isso são, no final das contas, os jornalistas. Com poucos celetistas e a maior parte como PJ e eventuais, totalmente precarizados, os trabalhadores sofrem para ter seus direitos respeitados. Foram oito anos sem ter reajuste”, diz Tanji.

“A luta do Sindicato dos Jornalistas, juntamente com o Sindicato dos Radialistas, há anos, é por um acordo coletivo de trabalho. Nos últimos meses, fizemos grandes mobilizações em frente à emissora e a reivindicação de todos – PJs, eventuais e celetistas – era por, no mínimo, a recomposição salarial. E a gente conseguiu, em parte. A recomposição de 10,33%, embora seja insuficiente frente às perdas, foi para todos: PJs, eventuais e celetistas. Mas seguimos reivindicando a contratação pela CLT dos PJs e eventuais, pois a situação atual causa indignação entre os trabalhadores e, para o Sindicato, é motivo de luta permanente. E seguimos cobrando reposição de perdas”, destacou o presidente do Sindicato.

Choque de gestão

A Fundação Padre Anchieta (FPA) constitui uma pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, e recebe aporte do estado. A gestão Doria pretendia, desde o início, torná-la “lucrativa”, ou seja, independente dos recursos estaduais, o que se choca com os fins atribuídos às emissoras públicas e fere o Estatuto da FPA. De acordo com informações divulgadas na imprensa em 2019, o então governador Doria e o secretário estadual de Cultura, Sérgio Sá Leitão, defenderam o aumento da audiência da emissora como estratégia para diminuir a dependência de recursos estatais.

O Estatuto da FPA, no entanto, é taxativo ao proibir em seu artigo 5º que a Fundação utilize qualquer um de seus veículos, a rádio e a televisão educativa, para publicidade comercial, ressalvado o recebimento de subsídios e doações recebidas pela Fundação ou recursos oriundos de publicidade institucional de entidades de direito público e privado no patrocínio dos programas, eventos e projetos de caráter educacional, cultural e outros.

O jornalista e sociólogo Laurindo Lalo Leal Filho aponta ainda que as pretensões de Doria são anticonstitucionais, uma vez que a FPA compõe o tripé do sistema de radiodifusão brasileiro por meio da comunicação pública. “Esse tal choque de gestão é a pá de cal no serviço público de radiodifusão no estado de São Paulo e a pá de cal na Fundação Padre Anchieta. A extinção da característica de serviço público da Fundação Padre Anchieta já vem se dando ao longo de muitos anos, mas esse choque de gestão seria somente a etapa derradeira desta destruição”, reitera Lalo.

Para ele, o processo vem se arrastando ao longo dos últimos vinte anos e abrange desde a abertura da emissora para a propaganda comercial até as interferências do governo do estado na sua gestão, fazendo da TV Cultura um misto entre emissora comercial e estatal. “Em vez de estar na comunicação pública, a TV Cultura está entre o tripé das estatais, porque são controladas politicamente pelo governo do estado, e das privadas, por serem mantidas em parte pela propaganda”, explica o jornalista.

Além disso, a busca pela audiência faz com que a emissora pública deixe de promover atividades culturais e educativas e opte por uma programação comercial que oferece o mesmo conteúdo das emissoras privadas.

Posição de FPA e TV Cultura

Procuradas por meio da assessoria de imprensa e do departamento de recursos humanos, a Fundação Padre Anchieta e a TV Cultura não responderam até o fechamento desta edição aos questionamentos do Sindicato sobre o cumprimento do Estatuto em relação à contratação de jornalistas e demais funcionários como PJ ou eventuais, e sobre a intenção de captar recursos por meio da propaganda comercial. (AF)

VERBAS DE 2021 EQUIVALEM A 52% DAS DE 2011 (CORRIGIDAS) 

Por definição, as empresas de comunicação pública são financiadas pelo Estado. Assim também acontece com a Rádio e TV Cultura, que recebem repasses do governo estadual de São Paulo. No entanto, os repasses variam a cada ano. Em 2019, primeiro ano da gestão Doria-Garcia, o Governo de São Paulo destinou 11% a menos do que no ano anterior, em valores reais. E mesmo que tenha, desde então, aumentado a verba, ainda estamos aquém de repor a inflação acumulada e chegar, pelo menos, ao mesmo patamar de valores de 2011.