Ausências inaceitáveis

Pesquisa da FENAJ mostra que o Brasil é recordista mundial na lista de jornalistas mortos pela covid-19. Sindicato pede ao Estado inclusão da categoria entre os grupos prioritários para vacinação, atribui a tragédia humanitária ao (des)governo federal e classifica Bolsonaro como genocida

Fotos: arquivos pessoais

por Alan Rodrigues

Lilo Clareto se foi. Alipio Freire também. Laerte ficou muito mal. Sobreviveu. Desde o ano passado, o Brasil vive a dolorosa faina de contabilizar milhares de vítimas da pandemia da covid-19. Entre os quase 15 milhões de contaminados no país, muitos ainda estão lutando contra o vírus, enquanto mais de 400 mil não resistiram. Nessa matemática funesta, dezenas de jornalistas se contaminaram e muitos sucumbiram à enfermidade, outros tantos escaparam da desgraça maior e ainda se recuperam.

O quadro sinistro descrito acima levou a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) a elaborar um relatório sobre essa tragédia humanitária, com ênfase em nossa categoria. O estudo Jornalistas vitimados por Covid-19 apurou que, de março de 2020 até o último 6 de abril, 169 jornalistas morreram vítimas do novo coronavírus. O número coloca o Brasil na liderança do triste e lastimável ranking dos países em que mais morreram jornalistas em razão da pandemia no mundo. E no relatório da entidade não estão computadas as mortes de Lilo e de Alipio Freire, ambas ocorridas no final de abril.

O documento da Fenaj mostra que, somente no primeiro trimestre deste ano, o número de jornalistas mortos por complicações advindas da infecção supera o de profissionais falecidos no ano passado. Em 2021, até o fechamento desta edição, 86 jornalistas morreram em razão da covid-19, ante 78 mortes entre abril e dezembro do ano passado. Entre os profissionais de imprensa que estavam em atividade e faleceram, metade trabalhava em rádios e TVs e quase 1/3 eram repórteres de imagem, como Maurilo Clareto, o Lilo. O número dos mortos é nacional, mas um recorte da pesquisa aponta para a realidade paulista – 22 jornalistas infectados pela covid-19 morreram no estado de São Paulo.

infografia: Fábio Bosquê

Não há um número preciso de jornalistas infectados no país, mas sabe-se que está na casa das centenas. A Fenaj alerta que dados como o índice de mortes ou outras referências podem estar subnotificados. Ou seja, a situação, que já é aterrorizante, pode ser ainda pior. Estudos comprovam que o alerta da Federação dos Jornalistas tem sua razão de ser. É fato que existe um problema grave nas notificações dos casos e que a comunicação desconexa entre as causas das mortes e os registros médicos encaminhadas aos cartórios de registros de óbitos contaminam as estatísticas reais.

Números da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) de fevereiro deste ano (Boletim InfoGripe) mostram que do início da pandemia até 20 de fevereiro último houve um total de 189.748 mortos por síndrome respiratória aguda grave (SARS) no país e que em 70% desses casos a causa mortis foi descrita de forma errônea. Ao fim e ao cabo, essas vítimas morreram mesmo por complicações da covid-19. “Os números são alarmantes, mas vamos continuar cumprindo nosso papel, porque informação verdadeira também ajuda a salvar vidas”, afirma a presidenta da Fenaj, Maria José Braga.

A verdade completa que está por trás das vidas ceifadas, dos enfermos e do sofrimento de milhares de famílias é que a política genocida deste (des)governo liderado pelo presidente Jair Bolsonaro é responsável por essa tragédia humanitária. A mortandade poderia, sim, ter sido menor, não fossem a superlotação das UTIs, a falta de oxigênio, insumos, vacinas e de apoio ao distanciamento social e ao uso de máscaras. Só não faltaram as políticas equivocadas de Bolsonaro, como o incentivo à aglomeração, ao uso de medicamentos ineficazes e o boicote à vacina, além do seu escárnio diante da tragédia. Por isso, não erra quem afirma que Bolsonaro é um genocida. “Os 169 casos apurados até agora são resultado da necropolítica do governo federal”, afirma Norian Segatto, diretor do Departamento de Saúde da Fenaj e responsável pela sistematização do dossiê.

Com efeito, os jornalistas mortos foram vítimas de um governo facínora e incompetente, que assumiu ser amigo do vírus em vez de combatê-lo. “Com Bolsonaro, temos um criminoso na Presidência. Desde a posse, ele cometeu um sem-número de crimes de responsabilidade, que acarretaram a atual catástrofe nacional, as mais de 400 mil mortes”, afirma Paulo Zocchi, presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo (SJSP). “Os números mostram a urgência de a sociedade se posicionar contra o governo genocida de Jair Bolsonaro”, completa Segatto, que integra o Conselho Fiscal do SJSP.

“Lilo não morreu por covid-19. Ele, como dezenas de milhares de brasileiros, morreu porque o governo Bolsonaro trabalhou para disseminar o vírus, como já está provado, e combateu todas as formas de combate e prevenção à covid-19, chegando ao limite de recusar a oferta de vacinas no ano passado. A luta pela vida do Lilo acabou. Mas a luta pela vida de todas as brasileiras e todos os brasileiros que ainda correm o risco de morrer segue e precisa ficar ainda mais forte”, afirma a jornalista Eliane Brum.

Desde o início da pandemia, a Fenaj e o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo atuam em diversas frentes para orientar e organizar a forma de garantir condições adequadas de trabalho diante da crise sanitária do novo coronavírus. Em último caso, denunciando as empresas, junto aos órgãos fiscalizadores, quando as medidas sanitárias são desrespeitadas. O SJSP enviou às empresas um ofício, em 16 de março de 2020, apresentando um rol de medidas para proteger a categoria da contaminação. Desde então, o Sindicato vem levando uma luta incansável para exigir home office ao maior número possível de profissionais, bem como condições seguras de trabalho presencial e de saídas para reportagem, testagem regular e em massa e afastamento imediato em caso de suspeita de contaminação.

48% DAS MORTES EM SP OCORRERAM DE JANEIRO A ABRIL DE 2021, EM MENOS DE 1/3 DO PERÍODO EM QUE ESTAMOS EM PANDEMIA

Na luta pela saúde e vida dos jornalistas, o Sindicato, assim como a Fenaj, está atuando em diversas frentes para proteger o exercício do jornalismo durante a pandemia, por meio da defesa do emprego, das condições de trabalho e da saúde dos trabalhadores da informação. Entre as ações, pressão sobre o Ministério da Saúde e governos estaduais e municipais para a inserção de profissionais jornalistas nos grupos prioritários de vacinação. “A questão é que as medidas têm custo e as empresas, muitas vezes, resistem. Temos exigido do poder público o reconhecimento de que, como categoria essencial no combate à pandemia, os jornalistas que estão em trabalho presencial ou fazendo reportagem têm de ser considerados do grupo prioritário para vacinação, pois estão expostos cotidianamente ao risco do vírus”, afirma Paulo Zocchi.

Luta e solidariedade são as palavras de ordem
Em meio à pandemia do novo coronavírus, surgiram diversas ações de solidariedade, organizadas por amigos e parentes das vítimas ou por entidades da sociedade civil. Um dos atos que mobilizou os jornalistas de todos os cantos do país foi a Rede de Amigos do Lilão, uma frente de apoio de pessoas que se reuniram virtualmente para tentar salvar a vida – com ajuda financeira – do repórter fotográfico Maurilo Clareto, ex-Estadão e revista Época. Lilo, como era carinhosamente chamado, morava nos últimos três anos em Altamira, no Estado do Pará, onde desembarcou ao lado da repórter Eliane Brum para, como diz ela, “contar a Amazônia por dentro”.

Lilo lutou muito pela vida. Antes de virar número nas estatísticas da covid, o fotojornalista fazia parte de outra lastimável estimativa: a dos desempregados que trabalham por conta própria. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sete em cada dez desempregados da última década trabalham informalmente. Sem salário fixo, sem poupança, Lilo viveu umas das faces mais difíceis de um profissional freelancer, que é o de não ter condições financeiras para manter um plano de saúde. Com trabalhos aqui, outro acolá, Maurilo Clareto, assim como 71,5% dos brasileiros, ou seja, mais de 150 milhões de pessoas, dependia do Sistema Único de Saúde (SUS). Mais trágico: ele morreu na fila para uma vaga numa UTI pública em São Paulo. “Não conseguimos salvar a vida do Lilo, mas saber que fizemos tudo o que era possível para tentar salvá-lo nos ajuda a viver o luto”, escreve Brum.

O jornalista Alipio Freire, editor da Revista Sem Terra, do MST, aos 75 anos, resistiu às torturas da ditadura militar e aos cinco anos em que ficou preso por se opor ao regime, mas não conseguiu resistir à doença. Autor de várias obras literárias, entre as quais Tiradentes, um presídio da ditadura: memórias de presos políticos (1997), e do documentário 1964 – Um golpe contra o Brasil (veja mais), ele ficou um mês hospitalizado por causa da infecção da covid-19 e tombou. “Alipio travou sua última batalha com a coragem dos bravos, como o fez durante toda a vida”, afirmou o jornalista Breno Altman.

Em meio às nossas perdas, todas verdadeiras tragédias, temos também histórias de sobreviventes, como a de dois membros do Conselho Editorial do Unidade, o jornalista Decio Trujilo(veja depoimento) e a cartunista Laerte. Como ela mesma disse no início de sua recuperação, não são histórias contadas em primeira pessoa. “Contei com gente querida e apoio firme desde o começo – sem isso não estaria de volta aqui. Gente que batalhou por um sistema de saúde eficiente, gente que povoa e dá movimento a esse sistema, gente que lembrou de mim, se preocupou, rezou, fez desenhos, emanou vibrações e comemorou as melhoras. Fico muito, muito grata e comprometida com essa força toda.” Ela chegou a ficar internada por dez dias, de 21 a 31 de janeiro, no Instituto do Coração do Hospital das Clínicas, o InCor, da USP, tendo passado alguns dias na UTI. Felizmente, se recupera e continua com a gente.

Em memória dos companheiros vitimados pela pandemia e pelos que sobreviveram, nós devemos nos engajar cada vez mais na denúncia do governo genocida, exigindo medidas eficazes contra a disseminação da covid-19, como vacinação e testagem em massa, respeito aos protocolos estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e investigação e punição dos responsáveis por essa tragédia. Nosso luto tem que se transformar em luta!


“Lilo Clareto mandou dizer que respira!”

O Movimento #respiralilo escreve: “Lilo Clareto mandou dizer que respira. Mas não precisa mais de ar. Saiu da UTI para habitar um lugar ao qual não temos acesso. Lilo se foi… Nós, amigos, familiares e, porque não dizer, fãs… Ainda estamos processando essa nova realidade. Não é o fim. É uma pausa. A obra de Lilo continuará viva pra sempre! E que privilégio poder passar pela vida e de fato deixar um legado. A internação e luta do Lilo reuniram muita gente, geraram repercussão, arrecadaram recursos, incendiaram ideias… Lilo virou substantivo, verbo, adjetivo. Isso tudo irá continuar.
Quem nos acompanha sabe da importância do olhar de Lilo em busca de uma sociedade mais justa. E esperamos continuar esse legado em um futuro próximo, com o #inspiralilo. Mas antes temos uma conta a pagar.
O movimento #respiralilo foi um conjunto de iniciativas realizadas por uma rede de amigas, amigos e familiares, organizados com o intuito de angariar fundos para custear o tratamento do fotógrafo. Infelizmente, em 21 de abril, após lutar contra a doença, Lilo foi mais uma vítima de um país mergulhado em uma das maiores crises sanitárias de sua história.
Mas as despesas médicas e um auxílio para subsistência imediata de esposa e filha precisam continuar.
Esperamos poder seguir com o apoio dessa tão linda rede solidária já formada. As possibilidades de contribuição vão desde a doação de qualquer quantia em dinheiro até a aquisição de produtos, cujos lucros serão revertidos em prol dessa causa.”

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