Artigo: A falácia do “jornalismo profissional”

por Laurindo Lalo Leal Filho*

Temos visto com frequência o uso da expressão “jornalismo profis­sional” em alguns veículos de co­municação. É uma categorização estranha, adjetivando a prática jornalística não mais por seu conteúdo, mas pela re­lação laboral. Até aqui o jornalismo vinha sendo de­finido por seu objeto, fosse científico, po­lítico, esportivo, entre outros. Categorias que deixam clara a especialização do jor­nalista e identificam para o público o tipo de serviço de informação oferecido. São comparáveis e podem ser contrastadas.

Seu uso está historicamente consolida­do, tanto nas corporações de mídia, como nas universidades. É o que permite organi­zar as redações, com a criação de editorias segmentadas, reunir matérias comuns em cadernos específicos de jornais e revistas ou de espaços no rádio e na TV, além de possibilitar a racionalização setorizada da pesquisa acadêmica.

Se as funções da categorização tradicio­nal são claras, o mesmo não se pode dizer da categoria “jornalismo profissional”.

Intui-se que ela se refira a uma relação de trabalho, na qual o jornalista é remunerado para prestar um determinado serviço. Por contraste, a outra categoria possível, nesse gênero, seria a do “jornalismo amador”.

Como essas adjetivações são pobres para qualquer efeito de categorização, numa relação binária que não contribui em nada para o entendimento da profissão e da prática jornalística, resta procurar outros significados e objetivos. A expres­são “jornalismo profissional”, ao que tudo indica, foi cunhada com o objetivo de des­qualificar todo jornalismo exercido fora dos meios tradicionais de comunicação. “Profissional” seria portanto sinônimo de qualidade e, consequentemente, de respeitabilidade, contrastando com o “amadorismo” dos demais.

Seguindo nessa linha, o jornalismo pro­duzido por novos atores, surgidos a partir do advento da internet, não seria “pro­fissional”. Dessa forma, sites como The Intercept Brasil, Jornalistas Livres, GGN ou a Agência Pública, por exemplo, não fariam “jornalismo profissional”, ou de qualidade. Seriam “amadores”, no sentido pejorativo do termo. Uma simples comparação dos trabalhos jornalísticos realizados por es­ses e outros veículos, considerados “não profissionais”, deixa clara a leviandade preconceituosa da diferenciação.

“Jornalismo profissional” não é, portan­to, uma categorização funcional, capaz de agrupar práticas comuns, diferencian­do-as em grupos, para entendê-las com clareza. Ao contrário, trata-se apenas de uma tentativa frouxa de forçar uma divisão baseada em juízos de valor, sem que haja sustentação em evidências.

Há formas mais precisas de categoriza­ção da prática jornalística, além daquelas determinadas pelos conteúdos produzi­dos. Para isso, torna-se necessário enten­der que esse jornalismo é realizado sob a lógica de uma empresa capitalista, que vive principalmente da propaganda e tem o lucro como objetivo prioritário. É, portanto, uma “mídia comercial”, diferen­ciando-se dos empreendimentos públicos, estatais ou comunitários. E assim deve ser categorizada e identificada.

Clarificando-se esses conceitos fica mais fácil entender o papel dessa mídia na so­ciedade brasileira, seus interesses e obje­tivos políticos. Não se pode esperar dela algo que possa, de alguma forma, contra­dizer esses princípios. Daí a necessidade imperiosa de uma regulação do setor, com uma legislação que estimule e proteja a diversidade de meios e, por consequência, de ideias e valores. Sem o que teremos sempre um arremedo de democracia.

Chegamos ao atual estado de coisas no país devido, em grande parte, a essa restri­ção estrutural de liberdade imposta pelo conjunto da mídia comercial. Basta lembrar o processo de criminalização da política, praticado ao longo de vários anos, em do­ses constantes. Ao se tornar porta-voz das ações do grupo jurídico-político instalado em Curitiba, denominado Lava-Jato, sem nenhuma crítica aos seus desmandos, tor­nou-se cúmplice de um golpe de Estado arquitetado internacionalmente.

Não há democracia que resista ao bom­bardeio diário de manchetes sensacio­nalistas, de imagens de dutos de esgoto expelindo dinheiro nas telas de TV ou de locutores fazendo discursos extremistas no rádio. Às notícias dadas com espalha­fato que depois mostram-se falsas, não recebendo o desmentido, quando ocorre, o mesmo destaque da versão inicial.

Foi essa, em síntese, a contribuição da mídia comercial para turvar o espaço político institucional, nivelando todos os seus participantes por baixo, na escala de idoneidade e respeito. Abriu espaço para o surgimento de um aventureiro disposto a ocupá-lo, como de fato ocorreu. Sofre agora ameaças, ofensas e restrições pu­blicitárias, mas não abre mão do apoio às medidas de desmonte das proteções sociais, do aniquilamento dos direitos trabalhistas, dos atentados à soberania nacional e, claro, à política econômica neoliberal.

Como empresas comerciais, defendem os seus interesses, usando o meio de se­dução de que dispõem para apoiá-los. As alternativas mencionadas para quebrar o monopólio da circulação dessas ideias pelo país também necessitam de apoio. Tornan­do públicas, por exemplo, as distorções informativas da mídia comercial, cada vez mais vísiveis nos veículos considerados “amadores”. Ou com ações originadas no seu próprio interior, como as recen­tes manifestações de alguns jornalistas contra o estúpido editorial da Folha de S. Paulo, equivalendo Dilma Rousseff a Jair Bolsonaro. Ações que alentam e per­mitem sonhar em avanços na direção de atos coletivos, como fizeram os colegas do jornal argentino La Nación, um dia depois de o neoliberal Mauricio Macri vencer as eleições presidenciais, como lembrou a professora Ângela Carrato, da Universi­dade Federal de Minas Gerais.

Para bajular o novo presidente, o diário conservador publicou um editorial colo­cando em dúvida o fato de ter havido uma ditadura no país. Com o título “Chega de Vingança”, o texto pedia o fim dos julga­mentos de repressores daquele período e alegava que os processos eram “atos de vingança” e que os opositores do regime eram “terroristas”.

“O repúdio dos jornalistas ao texto teve início nas redes sociais e ganhou notorie­dade quando dois dos principais repór­teres da publicação também divulgaram mensagens contra o editorial. Mais tar­de, todos os profissionais se reuniram na própria redação para uma foto portando cartazes onde denunciavam a lógica que construiu o editorial e exigiam que a em­presa se retratasse. No dia seguinte, o La Nación publicou em sua edição impressa e online a reação dos jornalistas e a respos­ta do jornal, reforçando que o texto não expressava a opinião de qualquer funcio­nário da empresa, mas, exclusivamente, a do próprio diário”, lembra a professora Ângela, no site Viomundo.

Ações como essas sacodem o tal “jorna­lismo profissional”, lá e cá. E mostram suas entranhas. Ao mesmo tempo permitem constatar que um fato importante, como o da revolta dos jornalistas argentinos, ga­nhou espaço em um veículo considerado “amador” pela mídia comercial, reduzindo a pó a classificação preconceituosa.

Como se vê, não se trata de profissiona­lismo ou de amadorismo, mas de compe­tência, seriedade e compromisso social, acima de tudo.


* Laurindo Lalo Leal Filho, jornalista e so­ciólogo, integra o Conselho Deliberativo da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e é diretor do Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé. Professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, atuou na Rádio e TV Globo, na TV Cultura, na TV Bandeirantes e na TV Brasil. Foi ouvidor-geral da Empresa Brasil de Co­municação (EBC) e Secretário de Esportes, Lazer e Recreação da Prefeitura de São Paulo (Gestão Luiza Erundina).